"Cultura de guerra" e investimentos massivos em startups colocam a França na liderança do setor de defesa europeu. Dívida pública e necessidade de cooperação internacional, porém, permanecem como desafios.
Lisa Louis | Deutsch Welle
A França tem potencial para liderar o setor de defesa europeu rumo à autonomia. O país busca concentrar os investimentos em segurança no continente e ocupar o espaço deixado pelos Estados Unidos na proteção da região. O presidente francês Emmanuel Macron, por exemplo, tem liderado os esforços para garantir a participação europeia nas negociações sobre a guerra na Ucrânia.
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© PUNIT PARANJPE/AFP/Getty Images |
No entanto, o país enfrenta uma escalada da dívida pública e, segundo especialistas ouvidos pela DW, só consolidará seu protagonismo se apostar em uma lógica de cooperação internacional.
Desde 2017, Macron já defendia o que chamava de "autonomia estratégica". "Quando se trata de defesa, nosso objetivo deve ser que a Europa tenha a capacidade de agir de forma autônoma, ao lado da Otan", disse ele durante um discurso na Universidade de Sorbonne, em Paris.
À época, seu apelo teve pouco eco dentro da União Europeia, especialmente por parte da então chanceler federal alemã Angela Merkel.
Oito anos depois, porém, a mentalidade europeia mudou. A invasão russa na Ucrânia já dura três anos e amplia o receio de que a guerra chegue a outros países do continente. Mais recentemente, o presidente americano Donald Trump vem dando sinais de que os EUA não devem mais garantir apoio logístico e financeiro à segurança da Europa, abrindo um vácuo na liderança militar que a França está disposta a preencher.
UE responde a Trump com esforço de rearmamento
O novo contexto geopolítico da região levou a UE a aumentar seus gastos militares. O bloco já anunciou que pretende ampliar o investimento militar a 800 bilhões de euros (R$ 5,2 trilhões) em defesa até 2030 em um programa chamado ReArm Europe.Países como Espanha, Itália e França também já revisam seus orçamentos para ampliar os gastos com defesa.
O investimento francês no setor, atualmente em torno de 50 bilhões de euros — cerca de 2% do PIB do país — deve dobrar até 2030. Economistas afirmam que esse movimento pode impulsionar o crescimento econômico da França em até 1,5%.
Fanny Coulomb, professora da universidade francesa Sciences Po, em Grenoble, diz que as 20 mil empresas de defesa do país, que empregam cerca de 200.000 pessoas, são a espinha dorsal do setor de defesa do continente.
"A França tem participantes em todos os segmentos do setor. Mantivemos essas habilidades desde a década de 1960, ao contrário de alguns outros países", disse Coulomb, que é especialista em economia de defesa, à DW.
"Reduzimos nossas despesas após o fim da Guerra Fria na década de 1990, mas os ataques terroristas ao World Trade Center em Nova York e a subsequente guerra contra o terrorismo reverteram essa tendência", explicou ela.
"Cultura de guerra" francesa
A diretora do think thank francês Institut Jacques Delors, Sylvie Matelly, acredita que isso contribuiu para manter uma certa "cultura de guerra" na sociedade francesa."Precisamos ser capazes de entender a natureza da ameaça para saber quais armas são necessárias", disse à DW. "Paris tem mantido essa capacidade de análise militar, ao contrário de países como a Alemanha."
Ela também destacou que a França tem sido pioneira na chamada capacidade de Sistemas de Sistemas (SoS), um conceito que reúne sistemas distintos atuando em conjunto, de forma sinérgica, para cumprir uma missão comum — conforme definido em glossário da Universidade de Aquisição de Defesa dos EUA (DAU), em Fort Belvoir, Virgínia.
Exemplos de SoS incluem operações que envolvem diferentes sistemas complexos, como satélites, drones, comunicação criptografada, inteligência artificial e caças de combate.
Segundo Matelly, isso engloba tecnologias francesas de ponta como os caças Rafale e o porta-aviões Charles de Gaulle.
"Por outro lado, reduzimos drasticamente a produção de armas leves e munições. Imaginamos que seria fácil reiniciá-la, por serem produtos menos complexos", acrescentou. No entanto, retomar ou apliar esta produção esbarra em diferentes obstáculos.
"Precisaremos de grandes quantidades de matérias-primas que são difíceis de obter, principalmente depois de nossas sanções contra a Rússia, importante fornecedora de minerais", disse Fanny Coulomb, da Sciences Po. "Além disso, temos que treinar urgentemente mais engenheiros e especialistas, já que nossos setores industriais estão em constante declínio nas últimas décadas."
Financiar tais operações é também um desafio. A França está lutando contra uma alta dívida pública e precisa reduzir drasticamente seu déficit, que deve ultrapassar 5% este ano. Como resposta, o governo anunciou a criação de um fundo mútuo de defesa por meio do banco público de investimentos Bpifrance.
Mais interesse dos investidores após o confronto de Trump com Zelenski
O atrito entre Donald Trump e Volodimir Zelenski, ocorrido na Casa Branca no fim de fevereiro, foi um "divisor de águas" para startups de defesa francesas, afirma François Mattens, cofundador e vice-presidente da Defense Angels, uma rede que promove o investimento nesse tipo de empresa.A reunião entre os dois presidentes terminou sem a assinatura planejada do acordo sobre o fornecimento de terras raras ucranianas e aumentou os temores de que os EUA pudessem parar de fornecer assistência militar à Ucrânia. O apoio de Washington foi retomado após um breve intervalo.
Relembrando o evento, Mattens disse à DW que muitos investidores "que costumavam ficar hesitantes, desde então me ligaram dizendo que gostariam de prosseguir com seus investimentos". Com sede em Paris, a Defense Angles calcula que, em 2025, 90 de investidores associados vão financiar 30 startups do setor.
Para ele, esse interesse é mais uma prova do papel crucial que as startups podem desempenhar. "Precisamos de inovação e tecnologia de ponta no setor de defesa. As startups dinâmicas são mais adequadas para produzir isso do que os grandes grupos."
A startup francesa Cailabs é uma das empresas que viu o aumento do interesse dos investidores desde o conflito entre Trump e Zelenski.
Sediada em Rennes, a empresa desenvolve dispositivos a laser para comunicação segura e internet, que competem com as antenas Starlink, do bilionário Elon Musk.
"Nossas instalações são menos detectáveis, já que não utilizam sinais de rádio. No entanto, ainda são grandes demais para uso na linha de frente", disse o CEO Jean-François Morizur à DW.
Mesmo assim, metade da receita da empresa já vem do setor militar — a projeção é chegar nos 80%. "Por enquanto, a maioria dos nossos produtos é vendida nos EUA, mas isso pode mudar em breve, especialmente com os novos investimentos europeus", afirmou.
Cooperação internacional
A Kayrros, outra startup francesa, assinou recentemente seu primeiro lote de contratos de defesa. A empresa usa inteligência artificial para detectar alterações em imagens de satélite, que em breve poderão incluir movimentações de tropas."A França pode exercer um papel importante graças à sua expertise em tecnologia espacial. Temos um mini Vale do Silício e excelentes centros de pesquisa nessa área", disse Antoine Halff, cofundador da Kayrros, à DW.
Mas, segundo os especialistas, isso não significa que o país deve agir sozinho.
Delphine Deschaux-Dutard, cientista política e vice-diretora do Centro de Pesquisa em Segurança Internacional e Cooperação Europeia da Universidade de Grenoble, afirma que Paris precisa encontrar o tom certo.
"A França não deve se ver como o novo líder global da defesa, substituindo os EUA", afirmou ela à DW. A construção de um setor de defesa europeu forte depende da cooperação com outros países, como Alemanha e Itália.
"Precisamos de campeões europeus para alcançar economias de escala. A França deve agir com diplomacia."
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