ONU faz 80 anos com legitimidade soterrada nos destroços da Ucrânia e de Gaza

Em 1945, as Nações Unidas nasceram sob a condição de que as potências do Conselho de Segurança tivessem poder de veto irrestrito. Agora, essa regra impede o órgão de atuar.


Por Jamil Chade | Super Interessante

A Organização das Nações Unidas (ONU) completa, em 2025, seus 80 anos. Mas o que era para ser uma festa se transformou num esforço para salvar uma instituição que, na visão de muitos, foi incapaz de evitar algumas das últimas guerras e tem sua própria existência questionada.

(Richard Sharrocks/Getty Images)

O silêncio por parte do Conselho de Segurança diante de crimes de guerra na Ucrânia e em Gaza se transformou num grito ensurdecedor de indignação contra a entidade. Pasmo, o mundo acompanhava cada uma das reuniões do órgão da ONU sem entender como resoluções que pediam paz acabavam vetadas.

Entender essa situação exige voltar aos anos de criação da instituição. A 2ª Guerra Mundial ainda abalava países inteiros quando, de maneira sigilosa, diplomatas dos EUA e da Europa iniciaram consultas para avaliar que mundo construiriam depois de os canhões se silenciarem.

A ideia era a de criar um sistema pelo qual um novo conflito daquela dimensão pudesse ser evitado. Mas esse não era o único objetivo. Os vencedores também buscavam construir uma estrutura pela qual sua visão de mundo – e seus interesses – se consolidassem.

Em encontros confidenciais em meados de 1944, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética traçaram como seria essa nova instituição. O plano também foi apresentado à China, ainda que os asiáticos tivessem tido pouca chance de influenciar o processo.

Ali nasceu a ideia de um Conselho de Segurança. Esse órgão da ONU poderia autorizar a mobilização de forças militares mundo afora, mas sob uma condição: de que aqueles quatro países tivessem poder de veto sobre qualquer tema que envolvesse seus interesses.

Nenhum deles podia ser alvo de decisões do órgão que eles mesmos estavam criando. Um episódio ficaria famoso. Durante as negociações, o ministro das Relações Exteriores soviético, Viatcheslav Molotov, perguntou se a futura ONU poderia condenar uma eventual ação militar soviética, como a Liga das Nações fez contra a URSS ao invadir a Finlândia em 1939.

A resposta foi dada pelos britânicos: o veto protegeria o Kremlin de interferências internacionais. Stálin poderia ficar tranquilo, algo reassegurado depois na Conferência de Yalta, já em fevereiro de 1945.

Os três, assim, estavam prontos para convocar a Conferência de São Francisco em abril – agora, incluindo os demais países. A França, até então invadida pelos nazistas, só seria incorporada como potencial membro do Conselho de Segurança ao final da guerra, já com a negociação praticamente encerrada.

As regras para participar do evento eram claras: nenhuma emenda às propostas das cinco potências poderia ser adotada sem o consentimento de todas elas. E foi assim que governos de todo o mundo se reuniram para assinar a Carta das Nações Unidas, uma espécie de bússola para um novo mundo que nascia.

O encontro foi repleto de tensão, espionagem e jogadas políticas. Do lado americano, o governo contratou um serviço de leitura labial para saber, de antemão, o que diziam os membros da delegação soviética. Já o Kremlin, desconfiado dos anfitriões, se recusou a ter sua delegação hospedada num hotel da cidade americana. A escolha foi permanecer num navio ancorado no Pacífico.

Mas eles chegaram a um acordo, inaugurando uma fase inédita para a diplomacia global. O primeiro veto não demorou, e já mostrou que a organização podia ser vítima de seus próprios criadores.

Em fevereiro de 1946, os soviéticos impediram a aprovação de uma resolução para retirar tropas estrangeiras do Líbano e da Síria. Entre 1945 e 1970, a URSS vetou resoluções da ONU em 107 ocasiões. As intervenções na Hungria (1956), em Praga (1968) e a invasão do Afeganistão (1979) também ignoraram solenemente o órgão.

Os EUA demoraram um pouco mais, mas também começaram a lançar mão do instrumento – e, dos anos 1970 em diante, passaram a liderar o ranking. Só para proteger Israel de qualquer tipo de condenação, os americanos já vetaram 49 resoluções. Eles também esnobaram o Conselho de Segurança ao intervir no Irã em 1953, na Guatemala em 1954 e em Granada e no Panamá nos anos 1980.

A situação mudaria com o colapso da URSS e o fim da Guerra Fria. A partir de 1991, o Conselho de Segurança voltou a funcionar de verdade, com um sentimento de que poderia haver uma cooperação entre as potências em busca de uma estabilidade internacional.

O período foi marcado pela aprovação de ações no Kuwait, Camboja, El Salvador e Guatemala, além da criação de missões de paz na Georgia, Tajiquistão, Macedônia, Bósnia, Angola, Haiti e República Centro-Africana. Operações para monitorar eleições, a administração do Timor Leste e a criação de tribunais internacionais também deram certo, num período que chegou a ser chamado de “Era Dourada” da ONU.

Mas a década de consenso chegou ao final, em parte por conta do 11 de Setembro. Também pesaram as novas posturas da China e da Rússia, ambas em busca de um protagonismo na definição do que seria o século 21. Desde então, uma nova e longa etapa de impasse voltou a dominar a diplomacia mundial.

Oitenta anos depois de sua criação, o sistema que atendia aos interesses das potências está em sua crise mais profunda e incapaz de agir. O temor de embaixadores, inclusive de brasileiros, é que, diante dos golpes sofridos pela ONU nos últimos anos, restabelecer a credibilidade seja um desafio. Parte de sua legitimidade está enterrada sob os escombros de Gaza e da Ucrânia.

A ONU certamente não se limita ao Conselho de Segurança. A cada ano, mais de 200 milhões de pessoas pelo mundo se alimentam, recebem remédios e abrigo graças aos trabalhos da entidade. É em suas agências que trabalhos fundamentais garantem o combate a doenças, a preservação de florestas e o controle das emissões de gases de efeito estufa.

Mas a ONU sabe que está numa encruzilhada. Se não passar por uma reforma com o fim do veto e uma ampliação dos membros do Conselho de Segurança, seu destino pode ser o colapso. O problema é que, para que uma reforma seja aprovada, todas as potências precisam estar de acordo. Um cenário improvável.

Não seria a primeira vez que um órgão mundial desapareceria. Antes da ONU, a Liga das Nações tentou evitar que a 1ª Guerra Mundial se repetisse. Quando ficou evidente que ela não teria a capacidade de frear as invasões nazistas e o Holocausto, a instituição melancolicamente fechou suas portas. Em Nova York, a cúpula das Nações Unidas conhece bem essa história.


Jamil Chade percorre os corredores da ONU há 25 anos, tanto em sua sede em Genebra como em Nova York. Foi testemunha de alguns dos momentos mais difíceis e históricos da instituição no século 21. Viajou com secretários-gerais da ONU e revelou escândalos dos bastidores da entidade.

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