Com as negociações de cessar-fogo em risco e o bloqueio da ajuda a Gaza pelo governo israelense, palestinos relatam que situação no território está ainda mais precária. "Tudo está em crise", diz morador à DW.
Tania Krämer | Deutsch Welle
Enquanto negociações indiretas entre Israel e o grupo islamista Hamas aconteciam em Doha na quarta-feira (12/03), palestinos relatavam que o cessar-fogo começa a parecer cada vez mais insignificante em Gaza.
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Embora os combates tenham diminuído, a vida cotidiana continua sendo um desafio para palestinos © Omar Al-Quatta/AFP |
"Não sei o que dizer – simplesmente não há vida. Não há nada com que não lutemos", disse Walaa Mahmoud à DW, por telefone, da Cidade de Gaza.
Mahmoud, que trabalha em uma organização da sociedade civil, diz que os preços dispararam nas últimas semanas. "Não temos água potável, não há eletricidade, é difícil obter tratamento médico, as estradas estão em más condições, os preços estão subindo, o transporte não está disponível e a segurança é inexistente. Tudo está em crise."
Relato semelhante vem de Walid Abu Daqqa, pai de quatro filhos e também morador da Cidade de Gaza. Ele teve sua casa completamente destruída durante a guerra e agora está morando com parentes. "Costumávamos suportar bombardeios e morte; agora, há pobreza, preços altos, exploração e condições adversas que dominam nossas vidas. Meus filhos não podem ir à escola e não há um sistema de saúde que funcione se eu ficar doente. E a ameaça de guerra paira no ar devido à ausência de acordos", disse à DW.
Abu Daqqa afirma que a situação está contribuindo para a "ganância e a corrupção" em todas as áreas, e acusou os comerciantes de "explorar a situação" depois que as passagens de fronteira foram fechadas. "Não há justiça, nem mesmo na distribuição de ajuda, e há até mesmo taxas para retirar dinheiro dos bancos. Nada está normal aqui", relata.
Travessias fechadas
Israel fechou suas passagens com Gaza e cortou todos os suprimentos de ajuda após o fim formal da primeira fase do acordo de cessar-fogo, no início de março. No domingo, o ministro israelense da Energia, Eli Cohen, anunciou que havia ordenado que a Israeli Electric Corporation parasse de vender eletricidade para Gaza, embora as autoridades israelenses já tivessem cortado o fornecimento de eletricidade em outubro de 2023.Em resposta, o Hamas, que controla a Faixa de Gaza há quase duas décadas, acusou Israel de "violação do acordo de cessar-fogo" e de "usar a ajuda como uma carta de chantagem política" ao interromper entregas e pressionar o grupo a aceitar novos termos para prorrogar a primeira fase do acordo de cessar-fogo e libertar os reféns.
O gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu acusou o Hamas de roubar suprimentos de ajuda em benefício próprio. Ele alega ter permitido a entrada de ajuda suficiente em Gaza para durar vários meses, acrescentando que não tem obrigação de continuar fornecendo assistência após o término da primeira fase do cessar-fogo.
A primeira etapa de 42 dias expirou no início de março, e as negociações sobre a segunda fase do acordo – que prevê a libertação dos 59 reféns restantes, a retirada das forças israelenses e diálogos sobre o fim da guerra – parecem não ter se concretizado.
Para muitos em Gaza, vem à tona a lembrança dos primeiros dias da guerra de 15 meses, quando Israel cortou todos os suprimentos após os ataques terroristas liderados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 contra comunidades no sul de Israel.
Sem eletricidade
O corte de energia elétrica anunciado recentemente afeta apenas uma linha de energia ainda em funcionamento, restaurada em novembro de 2024 e que abastece uma usina de dessalinização em Deir al Balah, na região central de Gaza.Desde o início da guerra, palestinos em Gaza não têm eletricidade alguma, dependendo principalmente de geradores movidos a diesel ou pequenos painéis solares. A infraestrutura de energia do território foi amplamente danificada pela guerra, piorando o já precário fornecimento de eletricidade.
De acordo com Gisha, uma ONG israelense que trabalha para proteger o direito de ir e vir dos palestinos em Gaza, a usina de dessalinização abastecia a região com 18 mil metros cúbicos (4,8 milhões de galões) de água por dia. Após o corte, espera-se que a usina funcione com geradores, reduzindo a produção para cerca de 2,5 mil metros cúbicos. A ONU estima que cerca de 600 mil pessoas serão afetadas pela drástica redução.
Esse é apenas mais um desafio para os trabalhadores humanitários. "Já estamos sentindo os efeitos", disse Amjad Shawa, chefe da rede de ONGs palestinas, por telefone, da Cidade de Gaza. "Você precisa de combustível para os geradores, e isso chega através das passagens. E, de acordo com diferentes organizações, temos apenas uma quantidade limitada de combustível para os próximos dias. Algumas padarias no centro e no sul de Gaza já pararam de funcionar por falta de gás de cozinha."
O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (Ocha, na sigla em inglês) disse na terça-feira (11/03) que "o combustível para geradores de reserva em instalações de água e saúde está acabando, os preços do combustível de cozinha estão subindo e a distribuição de farinha, produtos frescos e materiais de abrigo foi interrompida". O Ocha também informou que as agências de ajuda humanitária não conseguiram recuperar a carga que entrou na passagem de Kerem Shalom antes de ela ser fechada, há 10 dias.
Israel impassível diante das críticas internacionais
Israel enfrentou críticas internacionais sobre a suspensão dos suprimentos."A ajuda humanitária em Gaza é uma tábua de salvação para mais de 2 milhões de palestinos que têm suportado condições inimagináveis por muitos meses. Um suprimento contínuo de ajuda é indispensável para sua sobrevivência", disse Muhannad Hadi, coordenador humanitário da ONU, em um comunicado na segunda-feira. "O direito humanitário internacional é claro: as necessidades essenciais dos civis devem ser atendidas, inclusive por meio da entrada e distribuição desimpedidas de assistência humanitária."
A alegação de uso da fome como método de guerra é central, por exemplo, na denúncia que a África do Sul apresentou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) contra Israel por genocídio, acusação que Israel nega. Também integra o caso do Tribunal Penal Internacional (TPI) contra Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, para os quais o TPI emitiu mandados de prisão no ano passado.
A decisão de cortar a última linha de eletricidade restante também foi criticada por famílias de reféns que solicitaram à Alta Corte de Justiça de Israel que revertesse a decisão, conforme relatado no jornal israelense Haaretz na quarta-feira. Eles citaram o testemunho de ex-reféns que disseram que qualquer decisão governamental desse tipo levaria a respostas retaliatórias e abusos por parte do Hamas.
Necessidades enormes em ambiente imprevisível
Trabalhadores humanitários como Amja Shawa dizem que poderiam ficar horas descrevendo os muitos problemas que precisam ser resolvidos: a falta de moradia e abrigo, a escassez de água potável, o lixo empilhado por toda parte, o problema dos artefatos explosivos não detonados, os corpos de pessoas mortas em ataques aéreos ainda enterrados sob os escombros de edifícios destruídos. E ainda há a ameaça de outra guerra."Há também a situação psicológica das pessoas. Todos os dias recebemos um novo anúncio dos israelenses sobre o retorno à guerra. A maioria das pessoas vive agora sobre os escombros de suas casas, em condições humanitárias muito críticas. E, dia após dia, estamos perdendo a capacidade de lidar com essas grandes necessidades", disse Shawa à DW.
Nos últimos dias, Israel também intensificou seus ataques aéreos e de artilharia em Gaza. Há relatos quase diários de vítimas, o que contribui para uma situação já frágil. "O que temos hoje é diferente do que teremos amanhã, não há nada que possamos planejar", disse Shawa. "Estamos fazendo o nosso melhor e temos pessoas muito resistentes aqui, mas as necessidades são enormes."