A Casa Branca rechaça relatos da mídia e nega a transferência de armas nucleares para a Ucrânia. Saiba por que, após a queda da URSS, os EUA se engajaram ativamente para mandar os arsenais nucleares soviéticos para Moscou e pagaram compensações financeiras para Kiev assumir o status de país não nuclear.
Ana Livia Esteves | Sputnik
Nesta semana, a Casa Branca rechaçou relatos da mídia e negou estar considerando a entrega de armamentos nucleares à Ucrânia. De acordo com o conselheiro de Segurança Nacional da administração Biden, Jake Sullivan, os EUA focarão o envio de armamentos convencionais a Kiev, reportou a Reuters.
© Sputnik / Aleksandr Makarov |
"Isso não está em consideração, não. O que estamos fazendo é aumentando as capacidades convencionais da Ucrânia para que eles consigam se defender de maneira eficiente e lutar com os russos, mas sem capacidades nucleares", disse Sullivan.
Anteriormente, uma reportagem veiculada pelo jornal The New York Times sugeriu que os EUA poderiam enviar armas nucleares para a Ucrânia a fim de providenciar uma "garantia de segurança" a Kiev antes do fim do mandato de Biden.
A reportagem se baseia em fontes anônimas, que consideram a "devolução" de armas nucleares à Ucrânia uma "dissuasão instantânea" da Rússia, apesar da ciência das "sérias consequências" de uma decisão dessa envergadura.
O porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, reagiu à publicação, lamentando a "absoluta irresponsabilidade dessas considerações, feitas por pessoas que provavelmente têm pouco conhecimento da realidade e pouco sentimento de responsabilidade compartilhada".
"Sabemos que mesmo entre as correntes mais provocadoras que querem uma escalada das tensões existem grupos marginais extremistas", considerou Peskov, enfatizando que a reportagem se baseava em fontes anônimas. "Essa ideia provavelmente vem de grupos extremistas."
Após a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), cerca de 3,2 mil armas nucleares estratégicas soviéticas estavam instaladas nos territórios de Ucrânia, Belarus e Cazaquistão. Estima-se que cerca de 1.250 delas eram armas intercontinentais ofensivas, cujo objetivo era manter o equilíbrio estratégico soviético em relação aos EUA.
Naquele contexto, o arsenal ucraniano seria o terceiro maior do mundo, superando os arsenais combinados de Grã-Bretanha, França e China. Pouco interessados em expandir o número de potências nucleares no mundo, EUA e seus parceiros ocidentais trabalharam ativamente para transferir o arsenal soviético para Moscou, explicou o mestre em estudos estratégicos e doutorando em relações internacionais Tito Lívio Barcellos Pereira.
"Após o fim da Guerra Fria, os EUA emergem como um ator unipolar no sistema internacional e em uma posição vitoriosa geopoliticamente. Por isso, não tinha o interesse na emergência de novas potências nucleares", disse Pereira à Sputnik Brasil. "Nesse contexto, os EUA eram o ator mais interessado, eram o ator que mais incentivou e financiou esse processo."
Negociações envolvendo EUA, Rússia e Ucrânia culminaram na assinatura de um acordo trilateral que transferiu os arsenais para Moscou e levou à entrada de Kiev no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) como país não nuclear, em 1994.
"Passadas mais de três décadas, é um delírio falar em 'devolver' armas nucleares à Ucrânia. A essa altura do campeonato, isso não seria uma devolução, mas sim a transferência de novas armas", disse o historiador Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil. "A transferência de um arsenal a um país não nuclear iria completamente contra o TNP, abrindo precedentes perigosos."
O historiador, especializado em URSS, ainda nota que, apesar de armas nucleares estratégicas soviéticas terem sido instaladas no território ucraniano, o governo local não mantinha autonomia quanto ao seu uso. Naquele contexto, Moscou mantinha os códigos para lançar as armas e o chamado "controle positivo" do arsenal ucraniano.
"Além disso, naquela época a Ucrânia era muito próxima da Rússia, e se manteria assim pelos próximos 20 anos. A Ucrânia não era reconhecida como um membro do campo ocidental, e manter armas nucleares sob o controle de Kiev não traria naquele momento nenhum benefício para a Europa ou para os Estados Unidos. Pelo contrário", notou Ianhez.
As relações entre EUA e Rússia naquele contexto eram diferentes das atuais. Com um governo ávido por se aproximar do Ocidente, Moscou manteve laços estreitos com Washington durante todo o processo que garantiu a transferência dos arsenais soviéticos para a Rússia.
"As relações entre Washington e Moscou [durante o governo] de Boris Yeltsin eram bastante próximas, o que facilitou a transferência dos arsenais soviéticos para a Rússia, que foi apontada, com a anuência dos EUA, como a herdeira legal da URSS", resumiu Pereira.
A dura crise econômica que acometeu o Leste Europeu gerou preocupação nos EUA, dado o alto custo de manutenção de arsenais nucleares. O colapso econômico poderia gerar o contrabando dos próprios armamentos nucleares, ou da tecnologia dominada por cientistas soviéticos residentes na Ucrânia.
"Após a dissolução da superpotência socialista, os EUA se preocupavam que armamentos nucleares estratégicos pudessem parar em outros países de terceiro mundo, que poderiam usá-los contra Washington e seus aliados", disse Pereira. "A nova preocupação dos EUA nos anos 1990, terminada a Guerra Fria, era com o chamado contrabando nuclear."
Ambos os analistas notam que a indústria cinematográfica norte-americana engrossou o coro e produziu diversos filmes sobre o perigo representado pelos arsenais do espaço pós-soviético. Franquias como "007" apostaram em tramas nas quais armas do Leste Europeu caíam em mãos inimigas, ameaçando a segurança do Ocidente.
"Muitos filmes retratavam os países da antiga URSS em grave crise econômica, necessitando de fundos e, por isso, vendendo os seus arsenais nucleares a grupos terroristas fictícios no Oriente Médio e na península coreana", relatou Pereira.
De fato, o colapso econômico levou a um drástico aumento das atividades de grupos criminosos na Ucrânia, debilitada política e socialmente pelo choque imposto pela queda da URSS. Segundo Ianhez, "a Ucrânia foi tomada por máfias, transformando-se naquilo que se convencionou chamar de Estado falido".
"Apesar de a Ucrânia ter sido uma das regiões mais industrializadas da URSS, principalmente a região de Donbass, a indústria soviética tinha uma cadeia de suprimentos muito integrada e dependia de outras repúblicas da união para funcionar", explicou o historiador Ianhez. "Após a separação, muitos setores da economia ucraniana não sobreviveram, deixando o país em ruínas. Então manter os arsenais nucleares na Ucrânia realmente era arriscado."
O argumento econômico foi utilizado repetidamente pelos EUA durante suas negociações com a Ucrânia no período pós-soviético. Diplomatas dos EUA apontavam que Kiev não teria fundos suficientes para manter um arsenal tão numeroso, que geraria prejuízos para o orçamento e desenvolvimento econômico do país.
"Em troca, os EUA ofereceram compensações econômicas, perdão de dívidas e outras benesses", disse Ianhez. "Kiev percebeu que poderia extrair muitas concessões das potências nucleares, como os EUA, e não saiu do acordo de transferência de seus arsenais de mãos abanando."
As contrapartidas oferecidas à Ucrânia por EUA e Rússia também se estenderam ao setor nuclear civil, com garantias de fornecimento de combustível nuclear às usinas ucranianas e ao processamento de resíduos nucleares.
"Na época, políticos ucranianos perceberam que a manutenção do arsenal era caríssima. Os arsenais já não eram modernos, e a verdade é que eles teriam que pagar caro para manter um arsenal que dificilmente poderia ser utilizado sem o apoio técnico de Moscou", relatou Ianhez. "A situação se impôs, e os ucranianos tinham poucas alternativas a não ser transferir suas armas."
Renuclearização da Ucrânia?
Apesar dos arsenais terem sido transferidos e, em parte, desmantelados, os cientistas soviéticos residentes na Ucrânia mantiveram seu know-how nuclear. Com uma indústria de defesa também capacitada, muitos analistas se perguntam se a Ucrânia não seria capaz de desenvolver armamentos nucleares sem ajuda externa.
"O desenvolvimento de armamentos nucleares por parte da Ucrânia levaria tempo e exigiria recursos financeiros que ela não tem", declarou Pereira. "Mesmo que tivesse uma indústria de defesa, programa espacial e engenharia nuclear notáveis, com capacidades civis ainda intactas, a Ucrânia hoje em dia dificilmente conseguiria desenvolver armamentos, mesmo que se empenhasse."
Juridicamente, a Ucrânia precisaria se retirar do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e evitar as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o que dificilmente seria bem visto por seus parceiros nucleares no Ocidente.
"O desenvolvimento de armamentos nucleares por parte da Ucrânia levaria tempo e exigiria recursos financeiros que ela não tem", declarou Pereira. "Mesmo que tivesse uma indústria de defesa, programa espacial e engenharia nuclear notáveis, com capacidades civis ainda intactas, a Ucrânia hoje em dia dificilmente conseguiria desenvolver armamentos, mesmo que se empenhasse."
Juridicamente, a Ucrânia precisaria se retirar do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e evitar as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o que dificilmente seria bem visto por seus parceiros nucleares no Ocidente.
"Isso simplesmente enterraria todas as iniciativas multilaterais construídas no âmbito do controle de armamentos e não proliferação", disse Pereira. "É difícil imaginar como o TNP sobreviveria caso potências nucleares como EUA, França e Reino Unido reconhecessem a saída da Ucrânia do acordo, a fim de se rearmar nuclearmente."
A reação russa a tal cenário tampouco poderia ser ignorada pela comunidade internacional, levando a uma escalada sem precedentes nas tensões internacionais. Para Ianhez, "líderes europeus e os vizinhos da Ucrânia não apoiariam a sua nuclearização, mesmo em meio à atual retórica belicista".
"Apesar de estar se portando de forma bastante irresponsável e provocando uma série de escaladas, o fato de a Casa Branca ter afastado esse cenário até agora demonstra o quão grave seria a transferência [de armas nucleares para a Ucrânia]. Realmente, só vozes muito belicistas podem dar eco a uma insanidade dessas", concluiu o historiador.