A mulher de 4 nomes, 3 pensões militares e uma fraude de R$ 5 milhões

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Mulher tinha dois CPFs, duas carteiras de identidade e dois títulos de eleitor para receber pensões militares como filha, irmã e viúva


Melissa Duarte e Tácio Lorran | Metrópoles

Raimunda Góes Gonçalves, Raimunda Góes Gonsalves, Ruth Gois Gonçalves e Ruth Gonçalves Bunn: quatro nomes distintos para uma só mulher. Nascida como Raimunda, em 1951, mudou o nome para Ruth – com nova certidão de nascimento que a mãe dela teria conseguido em Mesquita (RJ) – e acrescentou o sobrenome “Bunn” ao se casar.


Tinha dois CPFs, duas carteiras de identidade, dois títulos de eleitor – com os quais votava duas vezes e em locais diferentes – e declarava dois Impostos de Renda (IRPF). Tudo isso para manter a dupla identidade e receber três pensões militares indevidamente: como filha solteira, irmã e viúva de ex-combatentes. A fraude ultrapassa a cifra de R$ 5 milhões.

A mulher, hoje com 74 anos, usou o nome de solteira (Raimunda) para obter as pensões militares como irmã de 2º sargento da Aeronáutica, em 2003, e como filha de ex-militar da Marinha, em 2004. O irmão e o pai eram, de fato, militares. Porém, nesse período, ela já estava casada há 30 anos e, portanto, não tinha direito aos benefícios. Além disso, a legislação não permite o acúmulo de pensões.

Em seguida, perdeu o marido, que era suboficial da Aeronáutica, em 2006. Dessa vez, sob o nome de Ruth, requereu a pensão como viúva. Deu certo.

A mulher tinha, portanto, três matrículas, realizava três provas de vida e omitia de cada uma das Forças o recebimento dos demais proventos.

“Observe-se que da conduta da pensionista, de natureza gravíssima, resultou dano ao serviço público, que arcou com o os pagamentos indevidos, sem levar em conta ainda a fraude eleitoral e fiscal”, diz trecho de relatório da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) obtido pela coluna.

“Ela, deliberadamente, fez uso da documentação obtida com as duas certidões de nascimento para constituir duas identidades e habilitar-se a pensões distintas: uma na Marinha e duas na Aeronáutica e, para evitar que a fraude fosse descoberta, e manter seu CPF e pagamentos ativos, ela com determinação apresentava duas declarações de imposto de renda, contratando dois contadores diferentes, e votava como se fosse duas pessoas, Ruth e Raimunda, para obtenção do comprovante de votação de cada uma de suas identidades”, prossegue o TCU.

Os pagamentos das multipensões militares terminaram somente em março de 2021, após denúncia. O prejuízo foi calculado em R$ 5,1 milhões, em valores atualizados.

No Superior Tribunal Militar (STM), os ministros mantiveram, em outubro de 2023, a condenação da mulher por estelionato. A pena foi de 2 anos, 4 meses e 24 dias de reclusão, com regime inicialmente aberto. Ela teve o direito a recorrer em liberdade.

Procurada, Raimunda/Ruth e o advogado dela não responderam aos contatos. O espaço segue aberto para manifestação.

Multipensões são ilegais

Esta reportagem faz parte da série Pensões Camufladas, publicada pela coluna ao longo desta e da próxima semana. A série revela histórias exclusivas sobre esquemas de fraudes em pensões militares. Exército, Aeronáutica e Marinha desperdiçam milhões de reais de dinheiro público mantendo na folha de pagamento pessoas que não deveriam ganhar sequer um centavo das Forças Armadas. A coluna analisou dezenas de processos no STM, no TCU e em tribunais federais ao longo de um mês.

A Medida Provisória nº 2.215-10, de 2001, não permite a acumulação de duas pensões militares.

Levantamento realizado pelo TCU identificou, ainda, “aumento significativo” na acumulação ilegal de pensões militares com mais de um benefício ou vencimento: passando de 79 casos em 2021 para 2.780 em 2022.

Mais e mais pensões militares

O caso, apesar de excepcional, não é o único. Em um modus operandi semelhante ao usado por Raimunda/Ruth, Maria da Conceição Mendes Daumerie, hoje com 76 anos, usava os nomes de solteira e de casada, tinha dois CPFs – um com cada nome – e duas contas bancárias para receber as pensões militares de filha solteira e de viúva.

Como falsa filha solteira, recebeu os proventos desde 1993, omitindo que havia se casado em 1989. Já a pensão de viúva foi solicitada em 1997, após a morte do marido. O montante recebido do Exército alcançou R$ 416,5 mil, pagos de 1994 a 2007.

A mulher confessou os fatos no processo. Também admitiu que sabia que não poderia receber as duas pensões militares.

A defesa pediu a nulidade do processo e sustentou que a Justiça Militar da União seria incompetente para a ação e o julgamento. Além disso, justificou que se tratava de uma idosa de 76 anos (à época do caso) e em condições humildes, sem muita instrução.

A Defensoria Pública da União (DPU) disse que o caso de Maria da Conceição se trata de uma idosa em “estado de necessidade” e que usava o dinheiro das pensões militares para a própria subsistência. “A pessoa não tinha dinheiro para comer. Então, como a gente vai exigir que a pessoa corte a pensão?”, disse o defensor público federal André Del Fiaco, que atuou no caso.

O STM negou recurso da DPU, mantendo a condenação por estelionato, em novembro de 2020. A punição foi de 2 anos de reclusão, com regime inicialmente aberto. Ela também teve direito a recorrer em liberdade.

O que dizem as Forças Armadas

Procurada há três semanas, Aeronáutica não se manifestou.

O Exército explicou que a “auditoria sobre as pensões militares é realizada tanto de forma física, em que se adotam medidas como a ‘prova de vida’ e a atualização de documentos, como na forma contábil, em que serão examinados os contracheques, as ordens bancárias e as planilhas de pagamentos destinados aos pensionistas”.

A Força também pontuou que todas as pensões são auditadas quanto à legalidade, tanto pelos órgãos de controle interno, quanto pelo controle externo, como o TCU. O Exército informou à coluna, em nota, que não se manifesta sobre casos específicos.

“As auditorias também são realizadas mensalmente, visando identificar e suspender os benefícios dos pensionistas que figurarem nos relatórios de óbitos do governo, bem como de identificar a conformidade aos requisitos legais de acumulações, teto, dentre outros. Também são realizadas de forma anual, com o objetivo de apurar a conformidade dos valores pagos aos requisitos legais.”

Sobre o caso das pensões militares de Raimunda/Ruth, a Marinha respondeu:

“O Sistema de Controle Interno da Marinha identificou o pagamento de outro benefício, que resultou no início das apurações, que levaram a descoberta dos fatos narrados, em julgamento no STM. A MB não habilitou por decisão própria a pensão citada na reportagem. A pensão foi habilitada por via judicial, onde a AGU inclusive questionou a possibilidade de fraude ou falsificação, e que deveria ser comprovada a dependência econômica, ou seja, não poderia haver outra pensão”, informou sobre o acúmulo de pensões.

Questionado na quarta-feira (11/12) sobre o caso de Maria da Conceição, o Exército não respondeu.

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