Israel muda o jeito de ‘fazer a guerra’ de forma mais profunda do que aconteceu na Ucrânia; Força mobiliza a Escola de Comando e Estado-Maior, Centro de Estudos Estratégicos e adidos em Israel e no Líbano para obter informações sobre o conflito
Por Marcelo Godoy | O Estado de S.Paulo
As bombas do Tzahal – as Forças de Defesa de Israel (FDI) – estão varrendo a cadeia de controle e comando do Hezbollah na sequência de uma operação de inteligência que desorientou parte do grupo e demonstrou o grau de infiltração obtido pelo governo de Tel-Aviv na estrutura do grupo extremista apoiado pelos aiatolás do Irã. Era 17 de setembro quando a nova fase da ofensiva israelense começou. Uma nova forma de se “fazer a guerra” se desenha no Oriente Médio.
Enquanto essa nova etapa da guerra acontecia, militares brasileiros e acadêmicos civis do Observatório da Praia Vermelha, ligado à escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) se reuniram com integrantes dos Núcleos de Estudos Estratégicos dos Comandos Militares de Área e do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEx), bem como com oficiais de outras forças com o objetivo de estabelecer cenários e lições sobre o conflito que escalou de Gaza para o Líbano e ameaça envolver os rebeldes do Iêmen e o Irã.
Mobilizado em outubro de 2023 para acompanhar o conflito em Gaza, logo após o ataque terrorista praticado pelo Hamas, Sandro Teixeira Moita, professor do programa de pós-graduação em Ciências Militares, da Eceme e integrante do Observatório, traçou nesses encontros alguns dos cenários, marcados por múltiplas possibilidades para o desenrolar do conflito no Oriente Médio.
“Podemos ver uma escalada com mais ações israelenses no Líbano, provavelmente até a linha do Rio Litani para diminuir a pressão dos ataques do Hezbollah contra Israel, principalmente o norte do país, o que permitiria às populações que foram evacuadas o retorno às suas casas.” afirmou. Outra possibilidade traçada por Moita é que “Israel tenha intensificado o ritmo das ações para causar a paralisia do Hezbollah com a eliminação da cadeia de comando do grupo, o que faz com que qualquer reação mais elaborada leve tempo para ser concebida e pensada.”
Para ele, “tamanha intensidade pode também ser pensada para dissuadir o Hezbollah de mais ações contra Israel, especialmente algumas mais ousadas, que estavam sendo planejadas como a tentativa de assassinato de um ex-chefe de Estado-Maior das FDI, que foi impedida recentemente pelo Shin Bet (serviço de segurança interno de Israel)”. Moita alerta que é difícil, neste momento, determinar qual curso de ação Israel deve tomar.
“Ao que parece, o país está usando todas as vantagens que possui no conflito para tentar mudar a situação em que se encontra, de um ‘cercamento’ seu por parte dos atores do ‘Eixo da Resistência’ coordenado, apoiado e equipado pelo Irã”, contou. Por enquanto, os cenários traçados por Moita e por oficiais do Exército entrevistados pela coluna é de baixa possibilidade de uma guerra direta entre Irã e Israel.
Para o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do CEEx, em dez dias praticamente toda a liderança do Hezbollah foi eliminada, o que certamente prova uma grande confusão nas linhas do grupo, pois a capacidade de comando e controle se desfez rapidamente. Para ele, esse seria o momento ideal, segundo a doutrina militar, para uma invasão terrestre, pois o grupo inimigo está em meio à confusão. “Uma ação terrestre seria muito semelhante ao que está acontecendo na Faixa de Gaza: um conflito urbano. O Hezbollah não faria uma defesa clássica, como os ucranianos fazem, em linha de trincheiras”, afirmou o coronel.
Moita traça um cenário muito parecido ao do coronel. Para ele, a destruição da cadeia de comando e controle do Hezbollah pode ser o primeiro passo para uma ação terrestre, uma vez que ela desorganiza o grupo e o coloca em uma situação mais frágil para resistir a um assalto terrestre israelense. “A intensidade das ações também mexe com o componente de prestígio do grupo, severamente abalado.”
Para ele, Israel demonstrou ter “conseguido penetrar o Hezbollah em grande nível, ao ponto de conhecer por meses as movimentações do líder, Hassan Nasrallah, fora os locais onde se encontravam praticamente todos os dirigentes de alto nível”. Em sua análise, isso também serve como um elemento de dissuasão, “uma vez que instaura a incerteza e dúvida no grupo, pois com certeza assistiremos uma caçada dentro da organização a quem seriam as fontes israelenses ali”.
De acordo com Moita, nesse movimento, isso passa a mensagem: “eu tenho tanta capacidade sobre você que eliminei toda a liderança sem precisar invadir. Imagine o dano que posso causar invadindo”. Para o coronel, a reação internacional, pressionando fortemente Israel, poderia levar Tel-Aviv a evitar uma ação terrestre bem como um possível recuo do Hezbollah para o norte, criando uma faixa de segurança no sul do Líbano, desejada por Israel, mas pouco provável.
A situação mais difícil nesse cenário é a da liderança iraniana, que corre o risco de se desmoralizar caso não reaja. Ao mesmo tempo, a nação persa tem evitado uma guerra direta com Israel, preferindo atacar seu inimigo por meios indiretos, como os grupos que criou ou apoia no Líbano, em Gaza, no Iêmen e na Síria. Além dos grupos do CEEx, da Eceme, do Observatório, os Exército ainda acompanha o conflito por meio do Centro de Doutrina do Comando de Operações Terrestres (Coter) e de seus adidos em Israel e no Líbano.
Para Moita, já está claro uma das principais lições da guerra no Oriente Médio. “O conflito passará sim, por uma grande mudança no sentido do ‘fazer a guerra’, uma vez que Israel está utilizando uma gama de instrumentos de Estado em conjunto com suas capacidades militares, numa enorme coordenação de meios de inteligência com recursos tecnológicos e utilização de mensagens no espaço informacional, por meio de redes sociais, para modelar as percepções a respeito do conflitos. Já vemos isto na guerra na Ucrânia, mas não na dimensão que Israel tem explorado.”
No Brasil, outras questões permanecem, como as relacionadas à diplomacia militar brasileira. Segundo Moita, a ação de Israel não traz prejuízos a ela, uma vez que o Brasil possui boas relações com os países da região. O Comando do Exército, porém, teme que imbróglios , como o que envolve a compra de 36 viaturas blindadas de combate obuseiros de 155 mm autopropulsados sobre rodas (VBCOAP-SR) para equipar unidades de artilharia divisionária. Trata-se de um negócio estimado em cerca de R$ 750 a milhões a R$1 bilhão.
Vencedora da licitação internacional, a empresa israelense israelense Elbit Systems – e suas subsidiárias brasileiras Ares Aeroespacial e Defesa e AEL Sistema – com seu sistema Atmos 2000 teve a contratação suspensa em maio sob a alegação de que era necessário submeter o negócio a nova análise jurídica do Ministério da Defesa. Havia resistência no governo à assinatura do contrato em razão de que setores do PT acreditavam que ele significaria apoiar o esforço de guerra de Israel, então, concentrado na invasão de Gaza.
Após a escalada do conflito no Oriente Médio, as chances para que o contrato seja assinado ficaram ainda mais reduzidas, caso Israel não aceite o cessar-fogo proposto por EUA e França. A preocupação maior é com o aumento do número de vítimas civis em caso de escalada do conflito. Ela está presente, por exemplo, no artigo publicado neste fim de semana pelo general Carlos Alberto Santos Cruz.
Com o título Proteção de Civis, Santos Cruz, que comandou a tropa da ONU no Haiti e na República Democrática do Congo, afirmou: “Sem longas explicações. É fundamental que o princípio da proteção de civis seja seguido nos conflitos. Ou isso é feito, ou aceitamos as barbáries que aconteceram ao longo da história, as que assistimos ao longo de nossas vidas, as que ocorrem atualmente e as que ocorrerão no futuro.”
O general foi enfático: “Se não respeitarmos o princípio da proteção de civis, validamos os casos de assassinato de inocentes, como os campos de concentração, câmaras de gás, paredões de fuzilamento, tribunais revolucionários, bombardeios de civis com produtos químicos, assassinatos chamados de ‘justiçamentos’, matança de civis em aldeias, genocídios, sequestros e estupros usados como armas de guerra e outras tantas barbaridades.”
O general lista uma série de conflitos e massacres na África para depois questionar: “Qual a diferença da barbárie de matança de civis com facões e machados, por ordem de líderes criminosos, para aquela que é feita com equipamentos mais sofisticados, com tecnologia, com equipamentos militares básicos ou de última geração, também ordenada por líderes políticos com toda a estrutura de planejamento e de assessoria política e militar?”
Santos Cruz diz que “qualquer autoridade com poder de fazer e conduzir a guerra tem que ter equilíbrio, fazer jus às suas prerrogativas, e também ser responsabilizada por suas ações”. “Um líder com poder do uso da força não pode tomar decisões comparáveis àquelas tomadas por assassinos, terroristas, criminosos de grupos rebeldes armados que não têm qualquer consideração pelo próximo.”
Para ele, o combatente “tem que ser forte, corajoso, determinado, ter iniciativa, agilidade e habilidade em combate, inclusive para sobreviver ao conflito”. “Mas também precisam saber quando apertar e quando não apertar o gatilho. Combater com determinação e motivação, não é combater com ódio. Ódio, poder pessoal e dinheiro não podem ser motivação de combate. Os militares e os governantes não podem perder a noção do que é certo ou errado, do que é dignidade humana, do que são pessoas inocentes, de quem é inimigo e quem não é.”
O general defende o profissionalismo e o equilíbrio que devem mover os combatentes e as autoridades. “O ódio, a vingança e a falta de escrúpulos movem os criminosos. A coragem é para combater e não para trucidar inocentes sem proteção. São indiscutíveis os direitos de defesa e de antecipação às agressões. Mas existem maneiras de exercer esses direitos respeitando a proteção de civis.” Para ele, tropas bem treinadas e especializadas fazem o vencedor ser respeitado. “A matança indiscriminada, com qualquer desculpa que seja, cria ódio com consequências futuras muito piores do que os problemas atuais.”
O general reafirma que o combate, a guerra, não pode ser atividade criminosa. “A proteção de civis precisa ser uma das condicionantes nas decisões políticas, no planejamento militar e na execução das operações.” E conclui: “Atacar homens, mulheres e crianças inocentes não é combate; é massacre, é crime, é covardia.” É este o tamanho do desafio que Israel enfrenta neste momento.