A historiografia alemã sobre a II Guerra Mundial e a atuação do partido nazista ressalta que seria impossível a manutenção de um governo autoritário sem legitimidade de uma parcela da população. Parece, a princípio, estranho, mas Hitler era uma figura muito popular e, sem dúvida, possuía um amplo apoio da população nas investidas que promovia contra as populações vulneráveis locais e contra o frágil equilíbrio do sistema internacional, articulado pela Liga das Nações.
Maynara Nafe | Monitor do Oriente Médio
O mesmo poderíamos falar sobre a realidade brasileira durante o que a historiografia nacional tem chamado de “Ditadura Civil-Militar”, uma vez que seria impossível um regime sustentar-se sem apoios de bases sociais claras, ainda que sob um projeto difuso. Parece anedótico, mas Emílio Garrastazu Médici seria eleito com facilidade caso houvesse eleições em 1969, pois apesar dos “Anos de Chumbo” estes eram também os “Anos Dourados”.
Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, discursa ao Congresso dos EUA, no Capitólio, em Washington DC, em 24 de julho de 2024 [Bryan Dozier/Agência Anadolu] |
Essa abordagem teórico-metodológica permite-nos analisar as relações entre governo e sociedade de maneira mais abrangente, fugindo das dicotomias que frequentemente recaem sobre o tema. Todo regime, por mais autoritário que seja, para sustentar-se ao longo do tempo sempre precisará de um apoio social para garantir a sua legitimidade. Subsidiariamente, precisará também de algum apoio ou diálogo internacional para que as suas ações passem incólumes sobre um sistema cada vez menos voluntarista e em que as soberanias estatais são cada vez mais relativizadas. Este é o caso de “israel”. O sionismo conseguiu, ao longo do tempo, capitular sob uma narrativa mentirosa de que esse movimento significa simplesmente o direito dos judeus ao retorno e que toda contestação a essa posição seria algum tipo de antissemitismo. A reprodução de uma ideologia etnocrática, nas escolas da Palestina ocupada, levaram, dentro de seus limites, a uma adesão sem igual a esse regime.
Esse apoio é complementado com a anuência de Estados que, ao garantirem a manutenção de seus interesses e privilégios, dão carta branca para que “israel” continue reiteradamente a perpretar crimes de agressão, punição coletiva, genocídio contra populações e se manterem impunes a eventuais sanções internacionais.
Segundo a Convenção de Montevidéu de 1933, em seu art.1º, o Estado é definido pela reunião de quatro atributos, a saber: população, território definido, governo e soberania externa. Dentre os quatro atributos o único que pode estar suspenso momentaneamente é o governo devido ao direito de Autodeterminação dos Povos. Ao prisma da tradição liberal, preconizada por grande parte da mídia internacional, esse direito seria mais efetivo em um sistema “democrático”, uma vez que por meio da liberdade de expressão e a atuação da sociedade civil (representante de interesses difusos) levaria os governos a tomarem decisões em consonância com a vontade popular afirmada em uma democracia representativa direta, semidireta ou indireta. Contudo, o que observamos na prática é, cada vez mais, um descolamento da opinião da sociedade civil com as suas respectivas lideranças, independente de filiação política.
A luta em defesa do direito de autodeterminação palestina deixa isso cada vez mais claro. As manifestações mais impactantes em defesa da Palestina foram em solo europeu, aparentemente uma grata surpresa para o avançar da causa, dado o histórico apoio dos europeus ao sionismo (não é à toa que toda a questão palestina funda-se nos meios para a solução da questão judaica na Europa). Definitivamente a descentralização dos meios de comunicação e as novas possibilidades de interação, que tem apontado para grandes desafios para humanidade, tem sido útil para desvelar as contradições insanáveis do sionismo e de seu regime. Porém, resta a pergunta: por que os governos têm mantido suas opiniões e posicionamentos à revelia dos anseios populares?
Para entender esse fenômeno é necessário analisar o contexto. No Reino Unido, por exemplo, as intensas manifestações pedindo por um cessar-fogo, em sua maioria na city londrina, eram compostas eminentemente por pessoas jovens filhas de refugiados e de emigrantes de todas as partes do mundo, mas em especial das ex-colônias do Império britânico. Esse movimento refletia um sentimento popular de mudança, na qual, em fevereiro, 66 % dos inquiridos apoiavam um cessar-fogo e apenas 13 % deles apoiavam a guerra contra os palestinos.
Apesar da movimentação popular em manifestações massificadas que entraram para a história, a elite que governa o país condenou a manifestação, em uma frente que variava desde Rishi Sunak, um conservador (Primeiro-ministro do Reino Unido entre outubro de 2022 e julho de 2024) até o senhor Keir Starmer, um trabalhista (Líder do partido trabalhista britânico). Essa aliança de amplo espectro político representa a tentativa de manutenção de uma política de Estado que a cada dia mais tende a caducar, o apoio a “israel”. A elite inglesa e seus representantes ainda veem na defesa do sionismo uma pretensa defesa da civilidade conquistada no pós-guerra e dos “valores ocidentais”, porém a população em constante mudança (cada vez mais heterogênea) busca se desapegar desses compromissos.
Na Alemanha, uma pesquisa apontou que 68% da população é contra a continuação do fornecimento de armas a “israel”. Em resposta, aos crescentes movimentos de críticas à aliança automática entre o Estado alemão e o sionismo, bem como críticas às atrocidades cometidas por eles, no ano de 2018, o Bundestag (parlamento alemão) adotou uma declaração afirmando que “o direito de existência do Estado de Israel é parte da razão do Estado alemão”, oficializando a tipificação de crime de antissemitismo à críticas e manifestação contra “israel”. A criminalização de qualquer manifestação contra “israel” na Alemanha, torna, na prática, mais viável a crítica ao sionismo e suas práticas em “israel” do que na própria Alemanha. Isso demonstra que cada vez mais a opinião popular sobre o sionismo é negativa, levando até mesmo as autoridades nacionais a tomarem decisões exasperadas.
Já nos Estados Unidos, enquanto milhares de estudantes, professores e trabalhadores das universidades se engajaram na luta pelo cessar fogo e por uma Palestina livre, o governo dos estados federados davam ordem de reprimir as manifestações e a Câmara dos Representantes votava um projeto que direcionava o envio de mais armas para “israel”. Ademais, os impactos das ações pró-genocídio da elite governamental norte americana perpassam as fronteiras geográficas do país, uma vez que até mesmo o Brasil chegou a deportar um jovem palestino a pedido das forças de segurança estadunidenses em junho deste ano.
A democracia liberal francesa também é um outro exemplo. Recentemente, 86 estudantes foram detidos ao manifestar-se contra o apartheid na Universidade de Sorbonne. Tal ação é apenas uma da cadeia de ações que condenam aqueles que opinam contra “israel”. Macron, o presidente da França, no dia 28 de maio deste ano, 77 ano depois que a ONU recomendou a partilha da Palestina, definindo a “criação” de “israel” e da Palestina, declarou que “ainda não é o momento de reconhecer um Estado Palestino”. A declaração veio à tona depois que a Irlanda, a Espanha e a Noruega reconheceram o Estado Palestino.
É necessário observar o laço que une os países citados anteriomente: são grandes potências ocidentais, nas quais o povo sai às ruas em solidariedade ao povo palestino, mas a elite permanece de prontidão na defesa dos crimes de “israel”. Afinal, por que as elites ditas cultas, liberais e abertas que dirigem as “grandes democracias” renunciam até mesmo aos seus princípios democráticos para apoiar “israel”? Em primeiro lugar, pelo descrédito dos que estão no poder. Por outro lado, quando essas mesmas instituições perdem a credibilidade, tornam-se mais autoritárias e mais repressivas porque têm medo e depois desqualificam ou censuram informações e opiniões dissonantes.