O casamento entre o regime de Israel e partidos europeus que promovem o ódio contra os muçulmanos, da mesma forma que a extrema-direita histórica fez com judeus, não é apenas coincidência
David Hearst | Monitor do Oriente Médio
A próxima geração de líderes políticos no que insistimos em chamar, candidamente, de democracia ocidental está bastante clara para que todos vejam. Tem energia, carisma e falam uma linguagem que qualquer um pode compreender. Conecta-se com um nicho amplo do eleitorado negligenciado pelas elites contemporâneas e tem toda a paciência estratégica para planejar uma eleição após a outra.
Sua mentalidade também está clara. Crê que a “civilização ocidental” sofre ameaças do Islã e que as “populações nativas” estão sob risco de perderem seus privilégios para os imigrantes. Adere ainda à tese do choque de civilizações e às conspirações da “grande substituição”.
Como se não bastasse, se não fisicamente, é ruidosamente pró-Israel.
Nossas aspas se devem a algo basilar: até mesmo na história recente, a noção de uma “civilização judaico-cristã” é absolutamente bobagem.
Ninguém na Inglaterra do século XVI ou na Alemanha da década de 1930 teria ousado falar de uma “civilização judaico-cristã”, pela simples razão de que foram os cristãos da Europa os maiores perseguidores dos judeus.
Mas a verdade não impede a propaganda.
Em entrevista recente à televisão francesa, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, foi questionado se poderia comparar, como ele mesmo fez, o pouso dos Aliados na Normandia aos ataques israelenses a Gaza. Netanyahu respondeu em bom francês: “Nossa vitória é sua vitória! A vitória da civilização judaico-cristã contra a barbárie. É a vitória da França! Se vencemos, vocês vencem”.
O fato de que a emissora comercial francesa TF1 deu espaço a um homem prestes a ter sua prisão requerida pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, viu em resposta uma enorme manifestação em Paris.
As aparências, no entanto, não devem nos enganar.
Mais do que conveniência
A representação de Netanyahu de seu genocídio nos territórios palestinos nos termos que os cruzados entenderiam é uma percepção compartilhada por segmento amplo do espectro político na França, incluindo o presidente Emmanuel Macron, que já aderiu a essa retórica. Suas declarações estão a um passo curto do que Macron descreveu como “separatismo islâmico”, de forma a alvejar as liberdades religiosas dos seis milhões de cidadãos muçulmanos no país.Entretanto, ninguém lucra mais com o colapso do liberalismo de Macron do que Jordan Bardella, garoto-propaganda da extrema-direita, cotado a ser, um dia, talvez em breve, primeiro-ministro. “Vá caminhar em qualquer um dos bairros em que morei, em Seine-Saint-Denis”, disse o extremista ainda em 2021, ao apontar uma “mudança nos mares demográficos” capaz de alterar “o rosto da França em questão de anos”.
Todavia, é um grave erro retratar o matrimônio entre Israel e Bardella, na França; Geert Wilder, do Partido para Liberdade (PVV), na Holanda; Santiago Abascal, do partido Vox, na Espanha; e mesmo o Alternativa para Alemanha (AfD), com tendências neonazistas, como mero oportunismo político.
Verdade — houve um prazer um tanto sádico em Israel ao presenciar a vitória eleitoral da extrema-direita no pleito recente ao Parlamento Europeu. Para os sionistas, é como uma vendeta a Espanha, Irlanda, Noruega e Eslovênia, que reconheceram oficialmente o Estado da Palestina.
O ministro de Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, tuitou um meme — em inglês e espanhol — dos líderes da Espanha com ovos em seus rostos, ao alegar que teriam sido “punidos” por seus eleitores devido a seu posicionamento na arena internacional. Para o ministro israelense, “o povo espanhol castigou a coalizão de Pedro Sanchéz e Yolanda Diaz com uma derrota retumbante [sic] nas eleições. Parece que abraçar assassinos e estupradores do Hamas [sic] não vale a pena”.
Amichai Chikli, político supremacista e hoje ministro de Assuntos da Diáspora de Israel, celebrou a renúncia de Alexander De Croo, então primeiro-ministro da Bélgica. De Croo foi a Rafah, no extremo sul de Gaza, em novembro, antes da troca de prisioneiros e se propôs como uma voz quase solitária na Europa a denunciar o massacre contra civis na Faixa de Gaza. “Apoiar o terror [sic] não cai bem com o povo belga”, afirmou Chikli.
Dito tudo isso, os laços contemporâneos que Israel busca nutrir com a extrema-direita na Europa são mais profundos do que apenas a conveniência política. E, certamente, é muito mais do que um “júbilo míope”, como indicou um colunista do jornal israelense Haaretz.
Aliança profana
Uma aliança com partidos políticos europeus que demonizam os muçulmanos de modo idêntico ao qual grupos de extrema-direita alimentaram o ódio aos judeus por décadas, senão séculos, logo se converteu em mais do que um flerte. De fato, se materializou a uma aliança extensa, tanto em discurso quanto em ações.Qualquer um que pense que essas expressões de apoio da extrema-direita a Israel são meramente retóricas devem olhar com mais cuidado ao que está acontecendo.
Gideon (Gidi) Markuszower, aliado de Wilders, teve a indicação ao novo Ministério da Migração e do Asilo revogada após emergiram receios sobre a conexão entre o cidadão nascido no território israelense com a agência de espionagem Mossad, conforme alerta do próprio Serviço de Inteligência e Segurança Geral da Holanda (AIVD).
A possibilidade de governos de extrema-direita por toda o planeta é considerada uma oportunidade de ouro pelos serviços de segurança israelenses, para plantar sementes na mais alta cúpula das capitais estrangeiras. Contudo, muitas vezes, sequer precisam chegar a tanto.
A exportação de armas da Sérvia a Israel decolou desde o início do genocídio em Gaza. A Rede de Reportagem Investigativa dos Balcãs (BIRN), junto ao Haaretz, identificou ao menos seis voos militares de Belgrado a Beersheba desde outubro, com carga de armas estimada em €15.7 milhões — quase US$17 milhões.
O presidente da Sérvia, Aleksandr Vucic, confirmou em fevereiro havia discutido junto a Netanyahu “um maior avanço das relações bilaterais”, de modo que o premiê reagiu ao “expressar sua gratidão por este apoio inabalável nas palavras como em suas ações”.
O nacionalismo sérvio de Vucic reflete a instabilidade da paz na região dos Balcãs. Não muito tempo atrás, o presidente apareceu ao lado de Milorad Dodik, líder da entidade política sérvio na Bósnia & Herzegovina, em um comício na cidade de Belgrado, ocasião na qual ambos conclamaram a união de sua etnia por toda a região.
Dodik alegou que a República Sérvia (Republika Srpska), a entidade sectária na Bósnia, permanece comprometida com os Acordos de Dayton, mas enfatizou — como um mau presságio — que buscará, em breve, o apoio da Sérvia para “solucionar seu status”. Há certamente uma ameaça aos Acordos de Dayton, que instituíram o Estado bósnio com duas entidades — uma federação bosníaca-croata e a Republika Srpska —, integradas por um governo central débil e instável.
“É impossível viver junto daqueles que, de maneira traiçoeira, maliciosa e falsa, tentam impor o genocídio como um elemento permanente de nossa nação”, alegou Dodik, em referência ao massacre de Srebrenica, no ano de 1995, sobre a qual as Nações Unidas estabeleceram o Dia Internacional de Reflexão e Memória do Genocídio, data anual em rememoração do episódio.
Dodic é conhecido por negar de forma persistente o genocídio de oito mil muçulmanos bósnios, homens e meninos, que ocorreu no passado ainda recente. Não é coincidência alguma que o jornal sionista The Jerusalem Post deu a este negacionista do Holocausto um espaço considerável em uma entrevista acrítica, senão até mesmo celebrativa.
Sobre Srebrenica, rebateu Dodic: “Não podemos chamar de genocídio. Especialistas e autoridades que devotaram toda a sua carreira em estudar o genocídio determinaram que não foi genocídio [sic]. Todas as autoridades no assunto [sic] dizem que não foi um genocídio. Confio nessas pessoas mais do que nos políticos. Não foi genocídio”.
O negacionismo, é claro, é música para os ouvidos dos editores do Jerusalem Post, que não hesitaram em traçar paralelos entre o “não-genocídio” de Srebrenica com o “não-genocídio” dos habitantes de Gaza, ou como descreveu o entrevistador, “os chamados palestinos”.
Segundo Dodic: “Não gostam de mim no Ocidente porque eu falo o que penso. Porém, se olharmos na história, nunca teve coexistência pacífica entre palestinos e judeus [sic], e, da mesma forma como a coexistência não é possível aqui, não é possível na Bósnia & Herzegovina entre sérvios e islamitas”.
Dodic ignora não somente as condenações de Srebrenica pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), com sede em Haia, cujos juízes caracterizaram como crime de genocídio, como também a história milenar de uma Palestina multicultural e multirreligiosa.
O casamento entre o governo em Tel Aviv, que tem como intenção declarada expulsar tantos palestinos quanto possível dos territórios ocupados, e os extremistas na Europa, que desejam expulsar os muçulmanos do continente, não é incidental.
Já vimos mais de uma vez a representação capciosa de Israel como um suposto Estado democrático sob cerco de forças bárbaras. Conforme a agressão israelense em Gaza se avizinha do décimo mês, não parece haver pretensão alguma de adotar uma linguagem de democracia.
Fascismo contagioso
O recente aniversário de um evento infame logo no início da Segunda Guerra Mundial também se mostrou revelador.Era julho de 1939 quando o St. Louis, um barco com destino a Cuba com cerca de 900 refugiados judeus, foi rejeitado por Canadá e Estados Unidos. De volta à Europa, Adolf Hitler esbravejou na rádio, em tom de vanglória, que não eram apenas os nazistas que odiavam os judeus. “Veem?”, disse o ditador. “Todo o mundo odeia os judeus”.
Um sentimento idêntico se expressa diariamente nas redes sociais e nos programas de televisão em Israel sobre os palestinos contemporâneos. O problema de expulsá-los de suas casas em Gaza e na Cisjordânia ocupada, proclamam os âncoras e políticos, é que “ninguém os quer também”.
Hitler se tornou um verdadeiro exemplo de comportamento em Israel nos dias de hoje. Moshe Feiglin, ex-deputado do partido Likud, liderado por Netanyahu, não hesitou em invocar o líder nazista ao declarar à televisão em junho: “Como disse Hitler, ‘não posso viver enquanto viver um único judeu’. Não podemos viver enquanto permanecer um único islamonazista [sic] na Faixa de Gaza”.
Trata-se de fascismo puro e simples, uma moeda de câmbio cada vez mais comum na grande imprensa. Todos os velhos tabus desapareceram. Não se trata mais “somente” de Itamar Ben-Gvir, ministro supremacista do Estado colonial, gritando pelas ruas, “Em nome da vitória, temos de encorajar a emigração de Gaza!”, mas vai além.
É por esse motivo que fascistóides da Europa não tardaram em aceitar e abraçar suas caras metades, também fascistas, no Estado israelense.
Não é passado — isso é Israel nos dias de hoje. Não importa mais quantos milhões de judeus foram vítimas do fascismo na Europa, mas sim quem, de bom grado, auxilia suas próprias violações supremacistas. O que importa é que encontraram um denominador comum na forma de um suposto inimigo. Para a extrema-direita europeia, o regime de Israel se tornou um exemplo de como achacar a minoria islâmica.
Para Israel, no entanto, restam perigos distintos em seguir esse caminho. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que o Estado colonial foi fundado em terras onde cidadãos muçulmanos não são uma minoria. Israel não representa uma maioria verdadeira nem mesmo em seu próprio Estado — imagine no restante do Oriente Médio. Além disso, o “Estado judeu” não está na periferia do chamado mundo islâmico, mas justamente em seu âmago.
Não é 1948 mais uma vez — ao menos não para os palestinos.
Caso Israel tente cometer um ato de limpeza étnica em larga escala na Cisjordânia, por exemplo, a Jordânia virá abaixo e possivelmente se tornará a base de um movimento ativo de resistência nativa ao longo de sua maior fronteira por terra. Israel jamais terá fronteiras calmas novamente.
Caso o Estado supremacista judaico, denunciado por apartheid, adote, de uma vez por todas, de maneira generalizada, o fascismo como ideologia e prática, a fim de conduzir sua “solução final” contra os palestinos, enfrentará uma encruzilhada existencial mais cedo do que imagina.
Não há ameaça maior à existência do “Estado judeu” — em seu caráter supremacista e de apartheid — no Oriente Médio do que aquela representada pelas palavras e ações dos líderes israelenses contemporâneos.
E não há ameaça maior aos judeus de todo o mundo — na atualidade como na década de 1930 — do que os fascistas que, por ora, compartilham um inimigo com Israel e que parecem voltar ao poder na Europa mais cedo do que tarde.