Na noite de quarta-feira (30), o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, concedeu uma entrevista exclusiva à Sputnik. Segundo analistas, diferentemente dos Estados Unidos, as falas de Lavrov evidenciam como a Rússia deixa suas intenções claras para o mundo.
Fabian Falconi | Sputnik
Em sua entrevista, Sergei Lavrov tocou em diversos pontos cruciais em relação à operação especial russa e, principalmente, na relação do país com os Estados Unidos, ator global que segundo o ministro não é confiável.
Sergei Lavrov © Sputnik / Grigory Sysoev |
"Por muito tempo, quisemos acreditar neles, negociamos e fizemos acordos. Mas depois se revelou que todas as suas promessas, que também foram registradas em papel e em resoluções do Conselho de Segurança da ONU, Washington não pretendia cumprir", afirmou o ministro.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Héctor Saint Pierre, fundador e líder do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), professor do programa de pós-graduação San Tiago Dantas, disse que as falas de Lavrov cravaram uma mudança nos costumes da chancelaria russa.
"A diplomacia soviética e russa sempre se caracterizaram por serem bastante discretas e muito comedidas nas suas palavras", afirma Saint Pierre.
"Mas, atualmente, usam palavras mais pesadas quando se referem aos EUA, e até certo há uma justificativa nisso devido a falta de credibilidade dos discursos norte-americanos."
Segundo o fundador do Gedes, as falas de Lavrov e de toda a chancelaria russa, como o representante russo na ONU, Vasily Nebenzya, demonstram uma falta de respeito pelos seus colegas europeus e norte-americanos, por causa da "hipocrisia do discurso, os dois pesos e duas medidas para todas as questões e a falta de respeito pela lei internacional".
"Faz muito tempo que a Europa não tinha uma turma de diplomatas e políticos tão ruins, tão fracos."
'Direto ao ponto'
Williams Gonçalves, doutor em sociologia e professor titular de relações internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que na entrevista 'Lavrov vai direto ao ponto', ainda mais ao ressaltar como "a Ucrânia está sendo usada pelos Estados Unidos".
Segundo o professor, o convite de adesão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi uma "provocação a Moscou", que jamais aceitaria ter um "país limítrofe integrado à OTAN e carregado de mísseis nucleares".
"Essa provocação faz parte da estratégia dos Estados Unidos de sufocar a Rússia mediante a expansão da OTAN por toda a parte leste da Europa."
Essa estratégia, apesar de não ser nenhum segredo, se dá por meios ocultos, assim como restante da diplomacia norte-americana. É o caso da explosão do gasoduto Nord Stream 2, que, de forma bem-sucedida, "seccionou a relação Alemanha—Rússia" e obrigou a Alemanha a comprar gás mais caro nos Estados Unidos, afirma Gonçalves.
Charles Pennaforte, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA), ressalta ainda outro ganho financeiro dos Estados Unidos relacionado ao conflito na Ucrânia.
"Não há interesse nenhum em Washington em encontrar uma solução [para o conflito], porque isso gera lucros para o complexo industrial bélico."
Não só as indústrias armamentistas norte-americanas ganham com a compra e envio de armas para Kiev, como também o conflito "reativou a OTAN com a entrada de novos membros", lembra Pennaforte, "e isso gera muito dinheiro para os EUA, que são um dos principais fornecedores de armas".
Faz parte dessa estratégia de subterfúgios estadunidenses a manutenção de Vladimir Zelensky no poder da Ucrânia, sublinha o professor, uma vez que a ascensão de algum candidato a presidente que queira buscar um diálogo com a Rússia é um "perigo" para os Estados Unidos.
"Não há nenhum motivo plausível que explique a não realização de eleições nesse período, tanto que a Rússia fez as eleições apesar de estar no conflito."
Paz na Ucrânia
As artimanhas norte-americanas continuam até mesmo na hora de se pensar um fim para o conflito ucraniano, destacaram os pesquisadores. Se não fosse pela atuação do Ocidente, diz Pennaforte, "a Ucrânia já teria aceito uma negociação [de paz] há muito tempo".
Como a solução para o conflito "passa justamente pelos Estados Unidos pela OTAN, [...] dificilmente existe a possibilidade do conflito se estancar".
"A Ucrânia está só satisfazendo os interesses OTAN e dos Estados Unidos."
Ainda assim, uma cúpula para a paz na Ucrânia será realizada em Lucerna, na Suíça, onde propostas serão discutidas. Contudo, destaca Gonçalves, esta é "uma cúpula que excluiu a Rússia e reuniu todos os aliados da OTAN, portanto uma proposta farsesca."
"Naturalmente a proposta da Ucrânia não faz nenhum sentido", afirma o professor da UERJ, "uma vez que por ela só pode haver paz se a Rússia se retirar de todos os territórios ocupados. Seria uma paz com vitória da Ucrânia."
"Na estratégia de segurança nacional dos EUA, a Rússia é chamada de ameaça imediata. Os Estados Unidos e a OTAN dizem explicitamente que seu objetivo é infligir uma derrota estratégica ao nosso país", declarou Lavrov em entrevista à Sputnik.
A Rússia nunca se negou a sentar na mesa de negociações, diz Saint Pierre, lembrando que maio de 2022 a Ucrânia e a Rússia já tinham acordado em termos de paz, até Kiev ser convencida por Boris Johnson e Joe Biden a continuar lutando.
"A Rússia continua aberta à negociação, mas obviamente a negociação não pode ser nos termos [dos Acordos] de Minsk, porque já não há confiança na Ucrânia que tinha naquele momento."
Na entrevista uma proposta que traga paz na Ucrânia foi destacada por Lavrov, em contraposição ao artifício da OTAN. "Quando ele [Lavrov] diz que há a possibilidade teórica, ele se refere a proposta que China e Brasil, membros do BRICS, fizeram para promover a paz", ressalta Gonçalves.
A menção a China, destaca Saint Pierre, é muito importante uma vez que se dá próxima ao recente encontro entre Vladimir Putin e Xi Jinping em Pequim, onde fortaleceram os laços de amizade entre os dois povos.
"Às vezes o Ocidente zomba da palavra amizade, como se a amizade fosse uma coisa muito fraquinha, muito leve, mas tanto para chineses quanto para russos, o conceito de amizade é muito forte."