Em meio a dificuldades financeiras, a Avibras Indústria Aeroespacial, uma das principais companhias brasileiras da Base Industrial de Defesa (BID), está avaliando sua venda para o grupo australiano DefendTex. Em entrevista à Sputnik Brasil, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo avaliou a situação como "um capítulo triste e lamentável".
Fabian Falconi e Guilherme Correia | Sputnik
Desenvolvedora de mísseis e foguetes para aplicações militares, como o Skyfire e o lançador Astros II, a Avibras integra o grupo de Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs) do Brasil, grupo seleto de companhias consideradas fundamentais no desenvolvimento tecnológico e científico e na promoção da segurança e defesa nacionais.
Para estar nessa categoria, a empresa precisa atender a alguns requisitos específicos: ter sede no país, ter brasileiros no controle acionário e manter a produção no país. Em troca, o negócio recebe incentivos tributários como a isenção de PIS/Cofins e IPI.
Com grande parte de seus clientes no exterior — como Forças Armadas do Iraque, Arábia Saudita, Catar, Angola, Líbia, Indonésia e Malásia —, essa é a terceira crise financeira que atinge a Avibras em seus 60 anos de história.
Dessa vez, no entanto, a Avibras está sob o risco de ser vendida para uma companhia australiana, a DefendTex, movimento criticado tanto por analistas independentes quanto pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região, que representa os trabalhadores da empresa.
Para eles, a transferência das tecnologias desenvolvidas pela Avibras para o exterior compromete a soberania nacional e a defesa do país.
Avibras passa por recuperação judicial
À Sputnik Brasil, Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa da gestão Dilma Rousseff (PT) e atual secretário de relações internacionais de São Paulo, afirmou que o episódio da Avibras é "apenas um reflexo das deficiências mais amplas do Brasil em matéria de defesa".
"O Brasil perdeu capacidade de tecnologia de defesa porque perdeu capacidade tecnológica. O Brasil perdeu capacidade de inovação em matéria de defesa porque […] perdeu capacidade de inovação em economia em geral", afirmou.
Com dívidas acumuladas em pelo menos R$ 600 milhões — estimativas do mercado financeiro colocam o montante acima de R$ 1,2 bilhão —, a Avibras se encontra em processo de recuperação judicial.
Marcello Marin, mestre em governança corporativa e especialista em recuperação judicial, explica à Sputnik Brasil que a recuperação judicial é um mecanismo criado para impedir a falência das empresas. Graças a ele, em aproximadamente 95% dos casos as companhias conseguem se reerguer, garante.
Durante esse processo jurídico, a empresa recebe uma proteção que impede que os credores acessem seus ativos, permitindo reorganizar suas finanças e negociar dívidas, seja por meio da venda de ativos ou da distribuição de participação acionária.
Atualmente, cerca de 98% das ações pertencem a João Brasil Carvalho Leite, filho de João Verdi Carvalho Leite, engenheiro formado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e um dos fundadores da Avibras.
Detalhes da recuperação judicial da companhia são escassos. Em declaração ao Valor Econômico, Guilherme Marcondes, advogado da Avibras, afirmou que R$ 386 milhões de passivo fiscal foram renegociados para R$ 63 milhões, graças ao mecanismo de transação tributária.
"O governo é o que menos sofre em uma recuperação judicial. Muitas vezes, as empresas que entram em recuperação judicial têm alguns benefícios do governo para fazer parcelamento das dívidas, muitas vezes excluindo ali multas, alguns juros ou dando algum desconto", disse Marin.
Já as dívidas trabalhistas, estimadas em R$ 14,5 milhões, foram negociadas de forma a dar a escolha aos funcionários: receber 82% do valor devido ou aguardar até agosto deste ano para receber 100% dos débitos.
"Cada caso de recuperação judicial é um caso", afirma Marin, e gerir um processo desses requer um profundo conhecimento da situação da empresa. Algumas companhias possuem ativos que podem ser vendidos para quitar as dívidas, enquanto outras enfrentam dificuldades para liquidar esses ativos.
As circunstâncias da Avibras ainda têm desafios próprios, como questões relacionadas à "soberania nacional, questões de informação privilegiada, informação confidencial […], é uma caixa de Pandora um pouco maior", disse Marin.
Por conta disso, inclusive, muitas vozes do setor pedem algum tipo de intervenção do governo, seja por meio do Ministério da Defesa, seja da Presidência, para embargar a venda a investidores estrangeiros. Marin, contudo, esclarece que tudo depende se a venda já está prevista no processo de recuperação.
"Se essa venda para investidores estrangeiros foi prevista em recuperação judicial, nada se pode falar, porque isso já está aprovado. Você simplesmente vai dar sequência ao que disse que ia fazer."
Elites 'negligenciaram' desenvolvimento nacional
Segundo Aldo Rebelo, "a venda da Avibras é apenas um capítulo triste e lamentável" da história do "declínio geral na sua ambição nacional e no seu projeto de se constituir como nação independente e próspera".
O Brasil, lembrou o político, já foi líder em setores tecnológicos de ponta no passado. "O país dominou a informática no seu início por iniciativa das instituições militares, quando a Marinha e a Universidade Estadual de Campinas [Unicamp] apresentaram um protótipo do computador Cisne Branco, e a Aeronáutica e a USP [Universidade de São Paulo] construíram o Patinho Feio."
No âmbito nuclear, o país também alcançou de maneira autônoma a tecnologia de enriquecimento de urânio, relembrou. "O Brasil dominou a tecnologia do átomo a partir de um programa próprio, dirigido pela Marinha, o chamado Programa Nuclear Paralelo, que nos deu uma centrífuga de alta eficiência que permite enriquecer o urânio."
As deficiências atuais em defesa, diz Rebelo, são apenas o reflexo de uma questão maior. Para o secretário, seria uma solução simplista atribuir a responsabilidade a um único governo. Essa responsabilidade é compartilhada com as elites políticas, econômicas, intelectuais e empresariais do país, que negligenciaram a capacidade de planejamento e desenvolvimento nacional.
"Todas elas têm um grau de responsabilidade. Nós perdemos a capacidade de planejar o Brasil. Nós tivemos já um período em que elegíamos ou apontávamos os chamados objetivos nacionais permanentes que todo país deve ter e que o Brasil já teve um dia e que foi perdendo."
Rebelo ressalta ainda que a Defesa nacional vai além da disponibilidade das Forças Armadas e seus equipamentos militares, envolvendo questões demográficas, científicas e tecnológicas.
"A política de defesa exige que o país tenha uma economia capaz de produzir os meios para a Defesa nacional, como converter uma fábrica de tratores em uma fábrica de tanques ou de aviões, desde que você tenha base industrial e tenha também o conhecimento e a tecnologia."
Rebelo conta que, quando foi ministro da Defesa, chegou a operar com equipamentos da Avibras na Amazônia e no estado de Goiás. "Essas tecnologias nos davam um grande poder dissuasório, porque embora fossem tecnologias usadas para finalidades civis, também podiam ser aplicadas para a área de defesa, tanto a nuclear como a espacial, […] a cibernética, a de informática."
Estratégica como é, a venda da Avibras seria uma grande perda não só para toda Base Industrial de Defesa, como para toda a economia brasileira. "A Avibras desenvolve tecnologia sensível para mísseis com alcance de até 300 km, dominada por poucos países."
"É evidente que a melhor alternativa seria a manutenção da companhia sob controle nacional e a proteção dessa tecnologia como patrimônio de defesa do país, mas para isso precisaríamos de outra correlação de forças", afirmou.
"Nós precisamos tomar a Avibras como uma lição. E para manter a Avibras ou construir ou reconstruir empresas como a Avibras, o Brasil precisa alterar o rumo da sua construção nacional."