Berlim emergiu como opositora dos planos de confiscar fundos congelados do Kremlin para a reconstrução e apoio militar à Ucrânia
Por Bojan Pancevski e Laurence Norman | The Wall Street Journal
O espectro da Segunda Guerra Mundial está assombrando as tentativas ocidentais de tomar ativos russos e canalizá-los para a defesa da Ucrânia contra Moscou.
O espectro da Segunda Guerra Mundial está assombrando as tentativas ocidentais de tomar ativos russos e canalizá-los para a defesa da Ucrânia contra Moscou.
Uma iniciativa liderada pelos EUA canalizaria fundos russos para ajudar a reconstruir a Ucrânia e reforçar suas forças armadas enfermas. MANU BRABO PARA O THE WALL STREET JOURNAL |
Berlim emergiu como um dos mais ferozes opositores do esforço liderado pelos EUA para comandar alguns dos quase US$ 300 bilhões em ativos do banco central russo que foram congelados no início da guerra da Rússia contra a Ucrânia. A Alemanha teme que confiscar, em vez de congelar, os fundos possa criar um precedente e inspirar novas acusações contra eles por crimes da época da Segunda Guerra Mundial.
As dúvidas arriscam o destino da iniciativa. Os EUA e o Reino Unido dizem que seu sucesso é crucial para uma vitória ucraniana, mas há poucas chances de progresso sem um apoio europeu mais amplo. Os fundos, várias vezes o tamanho do pacote de ajuda dos EUA de US$ 61 bilhões recentemente aprovado para a Ucrânia, reforçariam as forças armadas ucranianas enfermas e ajudariam a reconstruir o país.
Dois terços do dinheiro russo em jogo estão nas câmaras de compensação da Europa e, dois anos após a guerra, a Alemanha acaba de apoiar o uso dos lucros inesperados para financiar armas ucranianas. Paris, Roma e o Banco Central Europeu também hesitam, caso a apropriação das reservas afecte a confiança internacional no euro e nos ativos da moeda única.
O Grupo dos Sete está dividido sobre confiscar os bens da Rússia, com o Japão, que enfrenta reivindicações de reparação próprias da Coreia do Sul e de outros vizinhos, se opondo à medida. O Ministério das Relações Exteriores do Japão disse que continuará a discutir o assunto com seus parceiros do G-7.
As demandas por mais reparações da Segunda Guerra Mundial perseguem a Alemanha há décadas, às vezes azedando as relações com seus vizinhos. Após a Segunda Guerra Mundial, Berlim pagou às potências aliadas e à então União Soviética uma compensação pela guerra de agressão da Alemanha. Desde 1952, a Alemanha também doou mais de US$ 90 bilhões a sobreviventes do Holocausto e suas famílias, de acordo com organizações judaicas.
Recentemente, voltaram a surgir apelos por mais reparações. A Polônia, que a Alemanha nazista invadiu e ocupou durante a guerra, pediu US$ 1,3 trilhão em indenização a Berlim desde 2022, enquanto a Grécia desde 2019 pediu mais de US$ 300 bilhões.
A Alemanha diz que seus pagamentos iniciais do pós-guerra e um tratado de 1990 que ancorou as fronteiras do país após sua reunificação resolveram a questão. A então União Soviética e os EUA eram signatários do tratado; Polônia, Grécia e Itália não estavam envolvidas.
Em 2004, quando a Polônia aderiu à União Europeia, Berlim concordou em não apoiar as reivindicações contra Varsóvia de milhões de alemães expulsos e expropriados. A Polônia, por sua vez, desistiu de seus pedidos de indenização. Mas a questão continua a ser irritante.
"Quando falamos de carrascos, vítimas, castigo, sofrimento... exigimos não só a memória, não só a verdade. Exigimos compensação", disse o então primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, em setembro, no 84º aniversário da invasão alemã.
Tribunais na Itália - que os nazistas invadiram após o colapso do regime fascista de Benito Mussolini em 1943 - concederam nos últimos anos pagamentos de restituição a famílias de vítimas da ocupação. Alguns tribunais italianos tentaram então confiscar bens do Estado alemão, incluindo imóveis na Itália pertencentes a escolas alemãs e instituições culturais, históricas e arqueológicas.
A Alemanha levou a Itália à Corte Internacional de Justiça (CIJ), onde uma decisão sobre o assunto está pendente. As autoridades italianas se recusaram a interromper os casos, alegando que isso violaria a independência dos tribunais.
Berlim argumenta que o direito internacional proíbe os indivíduos de fazer reivindicações contra os Estados em tribunais estrangeiros e que os bens estatais são imunes à apreensão. Violar esse princípio no caso da Rússia minaria a posição legal de longa data da Alemanha, disseram autoridades de Berlim.
O Ministério das Relações Exteriores da Rússia disse que confiscar ativos russos seria "pirataria do século 21". Algumas autoridades russas avisaram que retaliariam.
O Estado polonês recebeu pouca compensação após a Segunda Guerra Mundial. Durante a Guerra Fria, seus então governantes soviéticos transferiram máquinas e navios alemães saqueados em vez de compensação. Mais tarde, a Alemanha pagou US$ 270 milhões a requerentes individuais na Polônia, depois de causar a destruição generalizada do país e deixar entre cinco milhões e seis milhões de mortos, cerca de três milhões dos quais eram judeus.
O governo comunista polonês desistiu de seus pedidos de indenização contra seu aliado do Pacto de Varsóvia da Alemanha Oriental em 1953. Mas o tema voltou a ganhar destaque após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Helmut Kohl, então chanceler da Alemanha, procurou vincular a negação das reivindicações de reparação da Polônia ao reconhecimento das fronteiras polonesas do pós-guerra, que incluíam áreas da Alemanha pré-guerra. Kohl acabou recuando sob pressão internacional e doméstica.
Andreas Rödder, professor de história contemporânea da Universidade Johannes Gutenberg Mainz, na Alemanha, disse que as reivindicações italianas e polonesas contra a Alemanha são válidas - assim como a recusa de Berlim em honrá-las integralmente. No entanto, os sucessivos governos alemães cometeram um erro ao adotar uma abordagem legalista e recusar-se a considerar um compromisso, acrescentou, levando o problema a agravar-se.
"A Alemanha estava confortável em sua suposição errônea de que o problema havia sido resolvido e deliberadamente evitou a questão por décadas, então não deve se surpreender que a Polônia e a Grécia agora digam que têm negócios inacabados", disse Rödder.
A Alemanha também argumenta que os ativos russos devem ser deixados intactos para usar como alavanca em quaisquer negociações para encerrar a guerra e induzir a Rússia a ceder parte do território ucraniano que ocupa.
Slawomir Debski, chefe do think tank Pism, disse que outra motivação para a recusa de Berlim em confiscar ativos russos pode ser que ela protege as empresas alemãs que ainda operam lá de retaliações. O grupo Leave Russia, que faz campanha para que empresas ocidentais saiam do mercado russo, diz que 272 empresas alemãs ainda operam lá.
Dentro do G-7, um compromisso complicado pode estar começando a surgir. Os EUA propuseram que o grupo antecipasse 10 anos de lucros - essencialmente pagamentos de juros sobre ativos vencidos - dos fundos congelados. Esse dinheiro funcionaria como garantia de um título emitido por um veículo de propósito específico criado pelo G-7 para arrecadar dinheiro para a Ucrânia. Os países do G-7 garantiriam a dívida.
Os europeus têm seu próprio plano de usar os juros gerados pelos ativos russos congelados para pagar armas e reconstrução da Ucrânia. É provável que isso aconteça em breve, embora autoridades da UE digam que a Europa pode se juntar ao plano dos EUA em 2025. As discussões ainda estão em fase inicial.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sancionou nesta semana uma lei que autoriza seu governo a apreender ativos soberanos russos sob jurisdição dos EUA. Os EUA detêm de US$ 5 bilhões a US$ 6 bilhões em ativos russos, segundo autoridades do Congresso.
"Estamos analisando uma série de possibilidades que vão desde realmente apreender os ativos até usá-los como garantia", disse a secretária do Tesouro, Janet Yellen, na semana passada.
Os EUA argumentam que, de acordo com o direito internacional, os países podem tomar contramedidas ilegais contra um país que viole suas obrigações internacionais. Embora advogados e formuladores de políticas digam que a invasão da Ucrânia pela Rússia parece se encaixar no princípio, há divergências sobre se algum país além da Ucrânia tem o direito de aplicar contramedidas.
Inicialmente, autoridades americanas também temiam que o confisco de ativos russos pudesse sair pela culatra contra Washington e aliados como Israel. Desde então, os EUA argumentam que apenas países diretamente afetados, como os principais apoiadores da Ucrânia, cuja segurança está ameaçada e que estão pagando por parte da defesa de Kiev, teriam direito a confiscar bens.
Bart Szewczyk, associado do escritório de advocacia americano Covington, que já assessorou a Comissão Europeia e trabalhou na CIJ, disse que as preocupações de Berlim em estabelecer um precedente para casos de reparação eram injustificadas.
"A lógica por trás das contramedidas claramente se aplica apenas às violações atuais e contínuas do direito internacional, em vez daquelas que ocorreram há 80 anos", disse ele.
O chanceler alemão, Olaf Scholz, um jurista que já administrou seu próprio escritório de advocacia, não está disposto a correr o risco, de acordo com autoridades alemãs. Uma das autoridades disse que a medida poderia abrir outras capitais europeias para reivindicações sobre escravidão e colonialismo.
— Andrew Duehren contribuiu para este artigo.