Setor de inteligência da Polícia Militar aponta que a corporação apreendeu no ano passado 492 armas de grosso calibre, fabricadas em nove países e no Brasil; a maior parte delas é da americana Colt
Por Marcos Nunes | O Globo
Rio de Janeiro — Um estudo da Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Polícia Militar revela que o poder de fogo estrangeiro compõe a maior parte do arsenal utilizado por traficantes e milicianos no Rio de Janeiro. Mais de 55% dos 492 fuzis apreendidos pela corporação em 2023 foram fabricados fora do Brasil. Entre os nove países onde esse armamento foi produzido estão Estados Unidos, Turquia, República Tcheca, Alemanha e Israel. A maioria dos fuzis (255), incluindo três armas de calibre ponto 30, capazes de derrubar helicópteros, foi apreendida em favelas controladas pelo Comando Vermelho (CV).
Polícia prende três chefes do crime organizado e apreende 11 fuzis no Campinho, na Zona Norte do Rio 13/01/2023 — Foto: Divulgação |
Foi provavelmente um projetil deste tipo de arma que, em março do ano passado, atingiu uma aeronave blindada da PM. Ela dava apoio a ação de policiais na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, quando um tiro entrou em diagonal na parte de baixo, passou entre as pernas do piloto e saiu pelo vidro dianteiro, sem que ninguém ficasse ferido. O helicóptero pousou em segurança no Grupamento Aeromóvel (GAM) da Polícia Militar, em Niterói. Chamada de caveirão voador, a aeronave precisou ficar fora de combate por mais de três meses para manutenção.
Caminho desconhecido
O relatório não aponta como as armas de guerra chegaram às mãos dos bandidos do Rio e se fixa apenas na quantidade, nos modelos e nos locais de apreensões. Depois do CV, o Terceiro Comando Puro (TCP) é a facção com mais áreas em que houve apreensões — 140. Outras 31 armas desse tipo acabaram sendo retiradas de redutos explorados por milicianos, e 15 estavam em áreas da facção Amigos dos Amigos (ADA).
Os fuzis apreendidos pela PM no Rio — Foto: Editoria Arte |
Quarenta fuzis foram encontrados em locais sem influência de facções, como estradas e rodovias, dez em pontos não identificados por algum tipo de falha nos registros e um numa área dividida entre o CV e a milícia. Dados do documento mostram que o fuzil fabricado pela americana Colt foi o mais encontrado com os criminosos. Foram apreendidas 199 armas, que, no calibre 5,56, podem disparar de 700 a 830 tiros por minuto. Para Rildo Anjos, especialista em segurança e armamento, a quantidade desse tipo de fuzil apreendido pela polícia está ligada ao fato de a arma ser usada por mais de 80 países.
— A Colt criou fuzis que deram origem à plataforma AR (o AR-15 e seus variantes). É usado por forças militares e por civis em países onde a legislação permite. Um fuzil Colt custa nos Estados Unidos em torno de US$ 2 mil (cerca de R$ 10,4 mil). Aqui, no mercado paralelo, fica entre R$ 60 mil e R$ 80 mil. Como é de fabricação americana, é muito exportado para vários países. Isso facilita desvios por contrabando a partir de alguns países — disse o especialista.
Para a Polícia Militar, o levantamento mostra que o poder bélico das quadrilhas do Rio precisa de uma solução que envolva os governos estadual e federal. E que os números revelam ainda que as apreensões aconteceram com mais frequência em comunidades disputadas por facções rivais ou de onde partem os bandidos que vão participar dessas disputas.
— Esse relatório traz para a gente uma série de dados que precisam ser analisados, entendidos e trabalhados de uma forma equilibrada, envolvendo todas as forças de segurança, tanto do estado quanto as do governo federal. Basicamente (o aumento de apreensões de fuzis) se concentra na região da Baixada e na Zona Oeste, onde houve essa disputa de territórios de forma mais contundente. Por exemplo, a área de Jacarepaguá teve um aumento de 168% nas apreensões de fuzis, se comparado com o ano de 2022 — analisou o coronel Luiz Henrique Marinho Pires, que foi entrevistado na quinta-feira, horas antes de ser exonerado do cargo de secretário estadual de Polícia Militar.
O mesmo estudo traz indícios da expansão do CV para outros estados. Fuzis apreendidos pela PM em áreas dominadas pela facção mostram que a maioria das armas tem o desenho de uma espécie de caveira perto de onde o carregador é encaixado. No início deste mês, dois foragidos da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, foram presos no Pará, com um grupo de homens em dois carros. Com eles, havia um fuzil com o mesmo símbolo.
Segundo informações da inteligência da PM, trata-se de uma marca feita por um armeiro do tráfico, que presta serviço de montagem e manutenção de armas para o CV, a maior facção criminosa do Rio de Janeiro. Os desenhos iguais em fuzis não são a única ligação entre os foragidos de Mossoró e o CV. Na ocasião da prisão, a Polícia Federal apurou que um morador do Complexo do Alemão, área controlada por esse grupo, transferiu via Pix R$ 5 mil para a conta de um mecânico, no Pará, a fim de que o dinheiro fosse entregue aos foragidos.
Uma segunda parte do estudo traz os números de apreensões de fuzis pela PM entre 1º de janeiro de 2024 e o último dia 16 de abril. Os dados preliminares revelam que foram 183 armas. O total supera, por exemplo, as apreensões feitas em São Paulo ao longo de 2023, quando todas as forças policiais paulistas conseguiram retirar das ruas 179 armas deste tipo. No Estado do Rio, foram 610 fuzis apreendidos no ano passado — incluídos os pela PM e por outras forças —, uma alta de 28% em relação a 2022.
Mais disputas, mais armas
Pelo levantamento da PM, as apreensões de fuzis continuam este ano mais frequentes nas áreas do CV. Nos quatro primeiros meses de 2024, foram 101 armas encontradas em favelas sob o domínio da facção. Segundo policiais, a explicação pode ser o fato de esse grupo estar envolvido em muitas guerras, o que leva a PM a fazer mais operações nesses territórios.
Ainda este ano, a PM encontrou 42 fuzis em favelas do TCP e 13 em áreas comandadas por milicianos. O restante é diluído entre a facção ADA e locais sem quadrilha específica.
Para Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM, antropólogo e pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj), um estudo sobre armas usadas pelas quadrilhas deveria ter como foco os fornecedores.
— A PM atua só na superficialidade, ou seja, as redes que abastecem estes mercados são poucos visíveis. Então, nesse caso, você só vai atuar onde os fuzis estão aparecendo, onde a ponta do problema brota. É da natureza da atividade capitalista criminosa se expandir. Como ela se expande? Através da violência. Isso precisa de algum elemento para expansão ou para proteção. O que seria? Armas. E armas de grosso calibre. Toda essa disputa aquece esse mercado ilícito — resumiu o especialista.