Em entrevista, especialista traça um paralelo entre as atuais ameaças ao transporte marítimo e o entorno estratégico brasileiro, sugerindo estratégias para cenários de insegurança no mar
Por 2T (RM2-T) Stilben | Agência Marinha de Notícias
O uso das chamadas “Águas Internacionais” é regido por um Tribunal Especial, filiado em Haia, na Holanda, que atua, em tempos comuns e de beligerância, para resguardar direitos sobre as águas e o trânsito livre de qualquer embarcação que esteja sob a tutela do Tribunal Internacional do Direito do Mar, baseando-se na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.
Maquete da nova Fragata “Tamandaré” - Mesmo com a total disponibilidade de recursos, uma fragata leva em média 5 anos para ser construída |
Mas, como se vê no noticiário recente, mundo afora, alguns grupos ousam desrespeitar o direito do livre trânsito de mercadorias pelo mar, praticando atos como a pirataria – a exemplo do que ocorre em regiões como o Chifre da África – e ataques terroristas, como os que têm sido perpetrados pelos rebeldes Houthis, no Mar Vermelho, próximo ao Iêmen. Tais conflitos, apesar de distantes da costa brasileira, têm potencial de impactos negativos no comércio nacional. Inclusive, já tem encarecido até mesmo o frete de nossos produtos, conforme noticiamos aqui.
Mas, para além disso, ataques como esses servem como um alerta sobre possíveis ameaças que a Marinha do Brasil (MB) poderia enfrentar, na defesa dos interesses do País, seja combatendo de forma direta forças hostis no mar, ou as dissuadindo por meio do Poder Naval.
É o que acredita o professor de Geopolítica e Coordenador do Grupo de Avaliação da Conjuntura da Escola de Guerra Naval, Capitão de Mar e Guerra da Reserva, Leonardo Faria de Mattos, apresentador do videocast Conexão Geo. A partir das experiências obtidas pela MB, ou em lições aprendidas em casos estrangeiros, o especialista traz suas impressões sobre esse cenário de instabilidade que pode, em algum momento, envolver o Brasil. E uma das chaves para enfrentá-lo com chances de sucesso, segundo ele, é o investimento orçamentário.
Confira a seguir:
AgMN – Qual balanço que o senhor faz da situação atual das ameaças de pirataria (combatidas pela Força-Tarefa Combinada contra a Pirataria (CTF-151), que tem à frente o Contra-Almirante Antonio Braz de Souza), bem como os ataques perpetrados pelos Houthis, no Mar Vermelho, em relação a possíveis prejuízos aos interesses comerciais do Brasil?
Prof. Leonardo Mattos – Especificamente no Mar Vermelho, o tráfego mercante de interesse do Brasil é pequeno. E sobre navios de bandeira brasileira, temos o caso da empresa Transpetro, que entra principalmente no Golfo Pérsico, para buscar petróleo árabe (mais fino que o nosso). Em média, um navio por mês. Tivemos, até agora, desde o início das hostilidades com os Houthis, um caso de navio transportando carga brasileira que saiu lá do porto de Vila do Conde (PA) e atravessou o Canal de Suez, entrando no Mar Vermelho e sendo atingido por míssil lançado pelos Houthis, felizmente sem feridos e sem avarias graves.
Logo, ponderando essas duas ameaças, em linhas gerais, a preocupação maior é com a volta da pirataria, que ocorre a uma certa distância do litoral da Somália, e que está levando os navios da Transpetro a terem uma preocupação maior.
AgMN – O Brasil tem experiência para lidar com esse tipo de situação? Se sim, qual?
Prof. Leonardo Mattos – O Brasil tem experiência em lidar com essas situações de pirataria pelos treinamentos que fazemos há muitos anos. Além disso, temos contribuído para o treinamento das Marinhas africanas, tanto nos exercícios “Obangame Express” (coordenado pela Marinha dos Estados Unidos e onde o Brasil já participa há muitos anos), e “Gran African Nemo”, coordenado pela Marinha da França, ocorre no litoral ocidental da África (no Golfo da Guiné) e para onde o Brasil tem enviado navios com regularidade.
Sem falar que estamos contribuindo contra a pirataria, enquanto comandamos a CTF-151, com o Contra-Almirante Antonio Braz de Souza sendo o terceiro que o País encaminha para lá. Eu diria que, de maneira geral, temos sim bastante experiência na parte prática, com as ações de retomar navios sequestrados por piratas, e também até ensinando marinhas estrangeiras para atuarem nessas operações.
AgMN – Esses ataques piratas já ocorrem em nosso entorno estratégico?
Prof. Leonardo Mattos – No momento, no Atlântico Sul, os casos de pirataria estão mais concentrados na região do Golfo da Guiné. Como comentei, o Brasil tem enviado navios para contribuir com o treinamento, mas digamos assim, do lado de cá do litoral brasileiro, no Atlântico Sul mais próximo, ainda não é o caso. Não temos casos de pirataria, mas sim roubo armado a navios atracados nos portos. Ou seja, não propriamente casos no mar, onde teríamos que empregar vários meios para combater. Mas, sem sombra de dúvidas, a experiência que temos é muito importante, pois poderá solucionar possíveis problemas no nosso litoral.
AgMN – E em relação a ataques terroristas, como aqueles que estão sendo feitos pelos Houthis?
Prof. Leonardo Mattos – A questão de combater uma ameaça como os Houthis, que atacam por terra o tráfego mercante, é algo que me preocupa bastante. Isso porque estamos vendo todas as dificuldades da Marinha dos EUA, que é a maior do mundo, e das Marinhas da Europa, tentando defender os navios contra os ataques de mísseis e drones. São operações bem complicadas.
Nós, graças a Deus, não temos ainda esse tipo de problema no litoral brasileiro, nenhum grupo insurgente ou terrorista perpetrando esses ataques, mas esta é uma situação que alerta a gente sobre a possibilidade de algum grupo criminoso talvez se valer de armas como os Houthis. Nesse caso, atacando o tráfego mercante, por exemplo em Cabo Frio (RJ), ou no saliente nordestino, próximo a Natal (RN), que são pontos de estreitamento, pontos focais próximos do litoral brasileiro.
Temos que ter condições de combater esses grupos em terra e também a partir do mar. É uma experiência bastante interessante o que está acontecendo lá, para mostrar que nossos navios também têm que ter uma boa capacidade de interceptação de mísseis e drones, que são alvos pequenos e de maior velocidade, difíceis de serem abatidos pelas defesas antiaéreas das embarcações.
AgMN – Já que existe toda essa preocupação, podemos encontrar um ponto em comum entre o aumento da Mentalidade Marítima e do Poder Naval brasileiros e a proteção das nossas riquezas em casos assim?
Prof. Leonardo Mattos – Sim. O aumento do Poder Naval brasileiro, da capacidade da MB em termos de novos navios, está diretamente relacionado com o aumento da Mentalidade Marítima. Vejamos, o orçamento da Marinha é apreciado pelo Congresso Nacional, formado por deputados e senadores votados pelo povo. Logo, se o povo brasileiro não tiver uma Mentalidade Marítima e não vir a importância de termos uma Marinha forte, os deputados e senadores não vão votar por orçamentos maiores para a Força.
Ou seja, é fundamental nós, não apenas da MB, mas todos aqueles relacionados com o Poder Marítimo Brasileiro, investirmos nessa questão da Mentalidade Marítima. Esse é um tema de grande importância para podermos receber recursos necessários e termos um Poder Naval sempre compatível com o tamanho do Brasil.
AgMN – Nesse ínterim, qual o tamanho da necessidade do Brasil em termos de recursos e de meios? Quais projetos podem auxiliar o País a manter a capacidade de enfrentamento ou dissuasão, com vistas a desafios possíveis?
Prof. Leonardo Mattos – É muito difícil falar de valores, do que seria um orçamento compatível com o Brasil, mas eu acho que um exemplo é a Proposta de Emenda à Constituição que estabelece a destinação de 2% do Produto Interno Bruto brasileiro para o orçamento de Defesa. Esse é o parâmetro que os países da OTAN estão utilizando; é disso para cima.
Isso porque existe uma demora natural em construir meios de defesa, especialmente no caso da Marinha. Um exemplo que eu costumo citar: mesmo que eu tivesse um cheque em branco agora para construir uma Fragata, demoraria 5 anos, a partir do momento em que eu recebesse esse cheque, para o navio ficar pronto. E não se trata apenas do tempo para construir, tem também a questão dos militares que comporão a tripulação dos navios.
Por isso, temos que ter uma previsibilidade de orçamento, e essa marca de 2% é importante porque poderíamos ter uma continuidade das ações necessárias para incrementarmos o Poder Naval, para que o Brasil siga defendendo sua Amazônia Azul, de 5,7 milhões de km², que corresponde a mais da metade do território terrestre brasileiro. Em suma, o Brasil precisa ter uma Marinha maior do que tem, para os desafios que possam existir nesse espaço marítimo enorme.
AgMN – Por falar em Amazônia Azul, este conceito, por si só, fomenta o sentimento de proteção do nosso entorno estratégico? Afeta positivamente o povo brasileiro e seus militares?
Prof. Leonardo Mattos – A Amazônia Azul é um conceito que surgiu em 2004, está completando 20 anos, e foi uma ideia importantíssima, que a MB teve naquela época. Ele serve para ajudar todos os envolvidos com o Poder Marítimo Brasileiro, não só o Poder Naval, a terem a tal da Mentalidade Marítima.
Ou seja, a correlação que fizemos em relação à Amazônia Verde, que todos conhecemos, chama a atenção da população brasileira de que existe um grande espaço onde o Brasil tem direitos de exploração – mineral, de pesca, entre outros –, e por onde trafega 95% do comércio exterior brasileiro, como grãos, petróleo e gás.
Esse é um espaço em que precisamos efetivamente ter condições de defender. Chamarmos esse espaço de Amazônia Azul, portanto, foi uma excelente ideia. Temos que propagar ainda mais esse conceito pela sociedade brasileira, especialmente nas escolas e grupos de interesse – como as federações de indústrias – para podermos mostrar à sociedade a importância do mar e do espaço marítimo que chamamos de Amazônia Azul. E claro, é necessário termos um orçamento de defesa compatível com as nossas necessidades.