A tripulação de um tanque israelense matou um jornalista da Reuters no Líbano em outubro ao disparar dois projéteis contra um grupo de jornalistas claramente identificados e, em seguida, "provavelmente" abriu fogo contra eles com uma metralhadora pesada em um ataque que durou 1 minuto e 45 segundos, de acordo com um relatório sobre o incidente publicado nesta quinta-feira.
Por Maya Gebeily e Anthony Deutsch | Reuters
BEIRUTE/HAIA - O relatório da Organização Holandesa para Pesquisa Científica Aplicada (TNO) -- que foi contratada pela Reuters para analisar as evidências do ataque de 13 de outubro que matou o jornalista Issam Abdallah -- mostrou que um tanque a 1,34 km de distância em Israel disparou dois tiros de 120 mm contra os repórteres.
Jornalista de vídeo da Reuters Issam Abdallah tira selfie enquanto trabalhava em Maras, na Turquia 11/02/2023 REUTERS/Issam Abdallah |
O primeiro projétil matou Abdallah, de 37 anos, e feriu gravemente a fotógrafa da Agence France-Presse (AFP) Christina Assi, de 28 anos.
Uma investigação da Reuters em dezembro incluiu a conclusão preliminar da TNO de que um tanque em Israel havia disparado contra os jornalistas. Em seu relatório final nesta quinta-feira, o instituto revelou que o áudio captado por uma câmera de vídeo da Al Jazeera no local mostrou que os repórteres também foram atingidos por tiros de calibre 0,50 do tipo usado pelas metralhadoras Browning que podem ser colocadas nos tanques Merkava de Israel.
"É considerado um cenário provável que um tanque Merkava, depois de disparar dois tiros de tanque, também tenha usado sua metralhadora contra o local onde estavam os jornalistas", informou o relatório da TNO. "O último não pode ser concluído com certeza, pois a direção e a distância exata do disparo (da metralhadora) não puderam ser estabelecidas."
A Reuters não conseguiu determinar de forma independente se a tripulação do tanque israelense sabia que estava atirando nos jornalistas, nem se também atirou neles com uma metralhadora e, em caso afirmativo, por quê.
Nenhum dos dois repórteres sobreviventes da Reuters ou outro jornalista da AFP no local se lembrava dos disparos de metralhadora. Todos disseram que estavam em estado de choque na ocasião.
As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram que estavam trabalhando em uma resposta às perguntas da Reuters sobre o incidente. Solicitada a comentar as conclusões preliminares da TNO em dezembro, a IDF declarou: "Não temos jornalistas como alvo". Um dia após a publicação da investigação da Reuters, a IDF disse que o incidente ocorreu em uma zona de combate ativa.
O direito humanitário internacional proíbe ataques a jornalistas, já que integrantes da mídia têm todo o escopo de proteção concedido a civis e não podem ser considerados alvos militares.
"Condenamos, nos termos mais enfáticos, o ataque a um grupo de jornalistas claramente identificados, trabalhando em campo aberto. O ataque matou nosso colega Issam Abdallah e feriu vários outros. Reiteramos nossos apelos a Israel para que explique como isso pode ter acontecido e para que os culpados sejam responsabilizados", disse a editora-chefe da Reuters, Alessandra Galloni.
IDENTIFICAÇÃO COMO IMPRENSA
O diretor de notícias globais da AFP, Phil Chetwynd, reiterou seu pedido de uma investigação completa e transparente por parte dos militares israelenses.
"Se os relatos de disparos contínuos de metralhadora forem confirmados, isso daria mais peso à teoria de que esse foi um ataque direcionado e deliberado", disse ele.
Ihtisham Hibatullah, gerente de comunicações internacionais da Al Jazeera, pediu ao governo israelense que divulgasse as conclusões de sua própria investigação.
"Esse incidente indica fortemente que o alvo foi intencional, conforme confirmado pelas investigações, inclusive pela TNO", afirmou.
O Ministro da Informação do Líbano não respondeu a um pedido de comentário.
Para ler o relatório de 70 páginas da TNO, que explica como o instituto de pesquisa independente de Haia comparou o ponto de disparo dos tiros do tanque e analisou o áudio do disparo da metralhadora, clique aqui.
A TNO observou que os sete jornalistas estavam usando coletes à prova de balas e capacetes azuis, a maioria com a palavra "PRESS" escrito em letras brancas. Eles estavam filmando bombardeios transfronteiriços à distância em uma área aberta em uma colina perto do vilarejo libanês de Alma al-Chaab por quase uma hora antes do ataque.
Imagens de vídeo das consequências do ataque também mostraram um carro preto pertencente à Reuters marcado com a palavra "TV" em grandes letras amarelas feitas de fita adesiva no capô e no teto.
A TNO disse que havia uma linha de visão clara do local onde os tiros do tanque foram disparados até o local do ataque. Nas transmissões de TV ao vivo antes do ataque, um ou mais drones podem ser ouvidos e um helicóptero israelense também pode ser visto em algumas imagens.
O instituto conseguiu determinar exatamente de onde vieram os dois disparos de tanque porque tinha um vídeo do disparo e do voo do segundo projétil, além de arquivos de áudio gravados no local do incidente.
A análise da TNO sobre o disparo da metralhadora mostrou que a "única correspondência razoável" era uma arma de calibre 0,50 disparada a 1,34 km de distância -- a mesma distância dos tiros do tanque -- mas as gravações de áudio não foram suficientes para determinar o ponto de disparo.
No entanto, o fato de as rajadas de balas terem ocorrido tão rapidamente após os disparos do tanque, juntamente com a análise, levou a TNO a concluir que é "provável" que eles tivessem vindo do mesmo local. O instituto independente não ofereceu nenhum outro cenário para a origem dos disparos da metralhadora.
O fotógrafo da Reuters Thaier Al-Sudani, de 47 anos, o cinegrafista Maher Nazeh, de 53, bem como dois jornalistas da Al Jazeera e outro da AFP também ficaram feridos no ataque.
INQUÉRITO COMPLETO
Vários dos especialistas que analisaram o relatório da TNO a pedido da Reuters expressaram opiniões divergentes sobre a possibilidade de a tripulação do tanque ter deliberadamente atacado jornalistas.
"O relatório da TNO conclui que era provável que, além dos dois disparos do tanque, houvesse disparos de metralhadora vindos do mesmo local, e isso aumenta ou agrava a deliberação com a qual eles parecem ter sido alvejados diretamente", disse Jessica Dorsey, especialista em direito humanitário internacional da Universidade de Utrecht.
"E acho que isso, do ponto de vista jurídico, se isso chegar a um tribunal, torna ainda mais convincente o argumento de que foi de fato um crime de guerra", declarou ela.
No entanto, Nick Kaufman, um advogado britânico-israelense que serviu no Corpo de Advogados Militares Gerais da IDF e defendeu clientes de alto perfil contra acusações de crimes de guerra em tribunais criminais internacionais, disse que ainda não está claro por que o tanque havia disparado contra os repórteres.
"Com base apenas no relatório da TNO, não é possível concluir que se tratou de um ataque intencional a jornalistas e não da busca de um objetivo militar legítimo que deu errado", disse ele. "Seria necessário fazer uma investigação completa e entender a inteligência militar que embasou o uso dos dois disparos."
No dia seguinte ao ataque, as Forças Armadas de Israel disseram que tinham imagens do incidente e que ele estava sendo investigado. Nenhum resultado foi divulgado.
(Reportagem de Maya Gebeilly em Beirute, Anthony Deutsch em Haia e David Clarke em Londres)