O genocídio israelense em Gaza será lembrado como o colapso moral do Ocidente.
Desde o primeiro dia da ofensiva israelense contra os palestinos do enclave, em outubro passado, cada parâmetro legal ou ético que Estados Unidos e seus aliados diziam tanto defender caiu por terra. Líderes ocidentais se apressaram a apoiar Israel, um após o outro, ao lhe ofertar sustentação política, financeira e militar, como um cheque em branco ao primeiro-ministro de extrema-direita Benjamin Netanyahu e seus generais para aterrorizar os palestinos.
O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, chegou ao ponto de se juntar ao primeiro encontro do gabinete de guerra israelense, ou seja, ao participar ativamente da discussão que culminou no subsequente genocídio em Gaza. “Venho a vocês não apenas como secretário de Estado dos Estados Unidos, mas também como judeu”, alegou o chanceler americano em 12 de outubro. A interpretação de suas palavras pode ser um tanto perturbadora, não apenas pela distorção identitária, mas porque, em último caso, significa que Blinken perdeu toda a credibilidade como político, mediador ou ser humano razoável.
Seu chefe, o presidente Joe Biden, parece preso em um ciclo vicioso, ao repetir há anos: “Você não precisa ser judeu para ser um sionista”. De fato, vive de acordo com a máxima, ao proclamar uma e outra vez: “Eu sou um sionista” — o que certamente é.
Como muitos outros líderes americanos e ocidentais, o presidente democrata abdicou por completo de qualquer adesão às leis humanitárias internacionais — abandonou até mesmo as leis de seu próprio país. Uma delas, por exemplo, “proíbe o Departamento de Estado e o Departamento de Defesa de providenciar assistência militar a unidades de uma força estrangeira que violam os direitos humanos com impunidade”. Ao contrário, o presidente — assim como seu ministro de política externa — aderiu quase que por um instinto tribal, alicerçado em noções ideológicas, ao vício de entornar gasolina nas chamas.
Embora sejam “pessoas protegidas” sob a lei internacional, os palestinos parecem dispensáveis aos olhos do Ocidente e mesmo irrelevantes ao ponto de seu extermínio ser reduzido a um elemento de “dissuasão” aplicado por Israel, como suposta prerrogativa de “autodefesa” — algo que demonstrado na retórica racista do ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, ao descrever os 2.4 milhões de palestinos de Gaza como “animais humanos”.
Se houvesse uma palavra maior para hipocrisia, poderíamos usá-la. Contudo, é o que nos resta neste momento.
No início da guerra genocida de Israel, muitos destacaram corretamente o paralelo entre a reação do Ocidente sobre Gaza e sua resposta coletiva à invasão russa na Ucrânia. Não obstante, à medida que as mortes de Gaza cresciam sem parar, a comparação parecia cada vez mais insuficiente. Mais de 12 mil crianças foram mortas por Israel em Gaza em 140 dias, comparado a “somente” 579 crianças nos dois anos de ofensiva russa.
Ainda assim, quando o chefe de política externa da União Europeia, Josep Borrell, foi questionado à queima roupa, em entrevista à Al Jazeera de 20 de novembro, sobre o contexto em Gaza, deu aos jornalistas duas respostas completamente incongruentes. Primeiro, ao responder sobre o caráter legal das atrocidades israelenses, declarou: “Não sou um advogado”. No entanto, ao abordar a operação do Hamas em 7 de outubro, não se acanhou: “Sim, considero ser um crime de guerra, matar civis sem aparente razão”.
Esse tipo de conversa não aparece tanto na mídia corporativa ocidental, simplesmente porque seus jornalistas sequer ousam ou se importam em questionar as ações israelenses em Gaza.
Contudo, quando surgem as oportunidades, fica impossível esconder a hipocrisia. Vejamos, por exemplo, a resposta de Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado americano, sobre relatos de estupro em Gaza e em Israel. Questionado em 18 de fevereiro sobre as denúncias de que mulheres palestinas foram estupradas por soldados israelenses, pediu a Israel — isto é, o próprio perpetrador dos crimes — que “conduza uma investigação detalhada e transparente sobre as alegações”. Entretanto, sobre as acusações, posteriormente desmentidas, de crimes sexuais cometidos por militantes palestinos em 7 de outubro, foi assertivo: “Cometeram estupro. Não temos razão para duvidar dos relatos”.
Dezenas de exemplos como esse emergem diariamente da boca dos líderes israelenses e de sua assessoria de imprensa na mídia corporativa. Mesmo agora, enquanto a mortalidade no território palestino bate incontáveis recordes na história moderna, tais figuras insistem em falar no “direito à autodefesa” de Israel, ao ignorar de bom grado o fato de que as autoridades ocupantes abdicaram do mesmo assim que se engajaram em sua agressão colonial contra uma população nativa — seja em maio de 1948 ou em 7 de outubro de 2023.
As regras de guerra e ocupação militar estabelecidas pela lei internacional — em particular, pela Quarta Convenção de Genebra — se situam em um contexto que existe para defender os direitos dos povos ocupados e não seus ocupantes. Essa verdade consagrada pelo tempo parece óbvia à enorme maioria da humanidade — exceto os centros de poder em Washington, Londres, Berlim e outros.
À medida que dezenas de emissários de todo o mundo prestaram seu depoimento ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), sediado em Haia, entre 19 e 26 de fevereiro, contra os crimes prolongados da ocupação israelense na Palestina, incluindo apartheid e limpeza étnica, Washington enviou seu representante para defender algo completamente distinto.
Sob o título irônico de “assessor legal” para o Departamento de Estado americano, Richard Visek bizarramente instou a corte máxima de Haia a ignorar por completo o direito internacional. “Este tribunal não deve considerar que Israel seja legalmente obrigado a retirar-se imediata e incondicionalmente dos territórios ocupados”, declarou Visek.
Há décadas — contudo, especialmente desde 7 de outubro —, governos ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, violaram cada parâmetro de ética e legalidade que eles mesmos desenvolveram, esboçaram, promoveram ou mesmo impuseram ao restante do planeta. Hoje, estão praticamente desmantelando suas próprias leis.
Agora que alguns líderes ocidentais finalmente começaram a sentir um breve desconforto sobre a enormidade do genocídio em Gaza, alguns — embora poucos — passaram a admitir que Netanyahu possa ter ido “longe demais”. Mesmo assim, não há um único sinal de reconhecimento de sua própria responsabilidade na crise, e mesmo que haja não poderá apagar o fato de que foram participantes ativos e cúmplices do genocídio ainda em curso.
Quando a poeira baixar, veremos com clareza o abundante sangue palestino nas mãos manchadas de Tel Aviv, Washington, Bruxelas, Londres, Sydney e todos os outros apologistas do genocídio. Um crime dessa magnitude jamais será esquecido, tampouco perdoado.
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