Um acordo assinado entre a Argentina e os Estados Unidos vai permitir ao Exército norte-americano instalar seu Corpo de Engenheiros na hidrovia por onde sai grande parte da produção do Cone Sul. Em diálogo com a Sputnik, o analista Cristian Riom alertou que os EUA vão poder interferir no comércio exterior da região.
Sputnik
Um acordo assinado entre os governos da Argentina e dos Estados Unidos concede ao Exército dos EUA interferência na hidrovia Paraguai-Paraná, um dos mais importantes canais de comércio da Argentina e de todo o Cone Sul da América do Sul. O documento, assinado nos primeiros dias de março, poderá até dar a Washington o controle sobre o destino das mercadorias que partem para países como a China.
Segundo o site da Embaixada dos EUA na Argentina, o acordo estabelece "cooperação técnica" entre a Administração Geral de Portos da Argentina (AGP) e o Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA, ramo encarregado da construção militar e das obras civis ao serviço da Defesa dos EUA.
Um comunicado da AGP informa que o acordo está focado na "troca de informações e gestão" e que permitirá "a implementação de novas formações em aspectos de gestão de portos e hidrovias navegáveis, manutenção da navegação e do equilíbrio ambiental, desenvolvimento de infraestrutura etc.".
Quanta influência isso terá?
A AGP destaca ainda como pano de fundo que o Corpo de Engenheiros já administra a hidrovia do rio Mississippi nos EUA, "que compartilha muitas características" com a hidrovia Paraguai-Paraná.
Mas, enquanto o governo argentino apresenta o acordo como uma conquista para fortalecer o canal de navegação, algumas vozes alertam sobre as implicações de o Exército dos EUA começar a ter participação no canal.
"O acordo fala de informação e gestão, portanto o Exército dos EUA passará a ter informações em primeira mão, com seu pessoal no território, sobre movimentações, infraestrutura e outros aspectos da gestão de decisões das autoridades argentinas em relação à gestão do recurso", disse à Sputnik o analista internacional argentino Cristian Riom.
O especialista destacou a importância que a hidrovia tem para o comércio argentino e regional, pois liga a Bolívia, o Paraguai e a região brasileira de Mato Grosso ao rio da Prata e ao oceano Atlântico, além de ser fundamental para a produção de cereais argentina. "Aproximadamente 70% da produção do Paraguai e 80% da produção argentina de commodities e bens manufaturados de origem agrícola saem pela hidrovia", observou.
O analista destacou ainda a sua importância para o comércio ilegal, uma vez que costuma ser uma rota de saída para a Europa da cocaína produzida na América do Sul e de recursos extraídos pela mineração ilegal. "É estratégico que a Argentina e os países da região tenham um controle efetivo desta estrada", afirmou Riom.
Principais recursos da América do Sul
O analista lembrou que o interesse dos EUA na hidrovia não é novo, já que em 2022 o governo norte-americano havia assinado um acordo muito semelhante ao atual mas com o governo do Paraguai, prevendo também a participação do Corpo de Engenheiros do Exército.
Em 2021, o mesmo Corpo de Engenheiros acordou com o Equador colaborar na assistência técnica e "proteção" da hidrelétrica Coca Codo Sinclair. Nos três casos, o envolvimento militar norte-americano foi liderado pelo mesmo homem: Adriel McConnell, gestor de projeto do Corpo de Engenheiros.
Para Riom, este contexto mostra a importância para Washington de abordar estes recursos-chave na América do Sul, bem como a sua intenção de aprofundar a sua participação o mais rapidamente possível.
"No Paraguai, meses após a assinatura, houve pressão dos EUA para que o país autorizasse a presença de militares norte-americanos em tarefas de controle. Esta é provavelmente uma questão que aparecerá também na Argentina em pouco tempo", disse Riom.
O analista considerou que a crise de segurança que atravessa a cidade argentina de Rosário, principal porto do rio Paraná, gera "uma situação favorável" para que os EUA façam este pedido, no âmbito de ações de colaboração com a Argentina na luta contra o tráfico de drogas.
Riom alertou ainda que a participação dos EUA na gestão poderia até interferir na saída de mercadorias para destinos comerciais sancionados por Washington.
"Certamente vão querer ter o controle de onde vai a mercadoria e do que entra. Ou seja, o controle do comércio exterior legal e ilegal. Para a Argentina tudo é uma perda de soberania sobre um de seus recursos estratégicos", alertou.
Em contrapartida, Riom destacou que países "sem viés ideológico" a favor de Washington, como a Bolívia e o Brasil, poderiam exigir informações da Argentina sobre esse acordo, nos termos do Tratado da Bacia do Prata, assinado em 1969 por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Na verdade, lembrou o especialista, o governo argentino de Alberto Fernández (2019-2023) pediu explicações ao Paraguai pela assinatura do acordo que introduziu o Corpo de Engenheiros dos EUA na parte paraguaia da hidrovia, homólogo ao assinado agora pela gestão de Javier Milei.
Para Riom, é necessário que haja uma "política regional" em torno da hidrovia, pois embora o marco regulatório regional não impeça que os países da bacia do Prata assinem este tipo de acordo, trata-se de uma "questão suficientemente sensível" para a região.