Especialistas destacam relação entre aumento da mentalidade marítima e do Poder Naval e a proteção das nossas riquezas
Por Segundo-Tenente (RM2-T) João Stilben | Agência Marinha de Notícias
As linhas de transporte marítimo no Mar Vermelho, que estão entre as mais importantes do mundo para o comércio internacional, tornaram-se perigosas para o tráfego de navios mercantes, devido aos diversos ataques perpetrados pelos rebeldes Houthis do Iêmen, após a eclosão do atual conflito na Faixa de Gaza. Ao que tudo indica, o grupo não tem intenção de cessar os ataques que realiza a navios norte-americanos, britânicos, ou mesmo de outros países, em apoio aos palestinos do Hamas.
Essa tem sido uma preocupação crescente não só para os países envolvidos nos conflitos, mas também a todos aqueles que, assim como o Brasil, dependem das rotas marítimas para escoar sua produção e importar insumos necessários à sua economia.
Dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento apontam que cerca de 80% do comércio global se dá por via marítima. No caso do Brasil, esse percentual é ainda maior, girando em torno dos 95%, de acordo com a Associação Brasileira de Logística, Transportes e Cargas.
Dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento apontam que cerca de 80% do comércio global se dá por via marítima. No caso do Brasil, esse percentual é ainda maior, girando em torno dos 95%, de acordo com a Associação Brasileira de Logística, Transportes e Cargas.
Dessa forma, os conflitos e a pirataria na região do Mar Vermelho, por onde circula cerca de 15% do tráfego mercante mundial, embora geograficamente distantes do Brasil, geram impactos nos prazos de entregas de importação e exportação, ao criar empecilhos à livre navegação comercial. Também encarecem os custos do transporte marítimo, com o aumento de seguros dos navios, por conta da preocupação com a segurança; a adoção de medidas de proteção adicionais; e a necessidade de desviar navios por rotas mais longas.
Em 12 de fevereiro, o navio graneleiro “Star Isis”, que transportava uma carga de milho brasileiro, entre Vila do Conde (PA) e o porto iraniano Band Imam Khomeini, foi atacado por mísseis disparados pelos Houthis quando navegava próximo ao Iêmen. O Irã é um expressivo importador desse cereal brasileiro (cerca de 4,5 milhões de toneladas/ano).
Grandes companhias mundiais de navegação, como a dinamarquesa Maersk, suspenderam os transportes marítimos na região, por onde passa parte considerável do petróleo, gás natural e bens de consumo, que chegam à Europa pelo Canal de Suez. Diversas transportadoras têm buscado uma rota alternativa, contornando o sul da África, o que acrescenta cerca de 10 dias à viagem.
Segundo especialistas, a crise no Oriente Médio já começou a ser sentida aqui no Brasil a partir de fevereiro. A primeira mudança foi uma alta no preço dos fretes, que deve impactar o valor final de bens de consumo. Como o frete da Ásia para a Europa já aumentou, isso impactará os custos no Brasil, pois quase 30% do que o País importa da Ásia passa pela Europa. Ou seja, os conflitos no Mar Vermelho serão sentidos no bolso dos brasileiros.
É o que defende o Coordenador do Grupo Economia do Mar e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval, Dr. Thauan Santos. Segundo ele, considerando que parcela significativa do que consumimos no Brasil vem da Ásia, o conflito pode afetar mais diretamente o preço dos principais produtos importados.
“Uma estratégia para evitar impactos tão imediatos e intensos é diversificar a origem das importações e aumentar a autossuficiência em determinados setores. A primeira delas tem relação direta com a política comercial; a segunda, com política industrial. Como dificilmente podem ser alteradas no curto prazo, uma primeira preocupação é manter o acesso aos produtos importados. Nesse contexto, garantir e/ou assinar novos contratos, adicionar novas cláusulas sensíveis à conjuntura internacional e usar instrumentos combinados de mitigação do impacto sobre a inflação devem ser ferramentas usadas em conjunto”, explica o professor.
Para Thauan, outra estratégia para mitigar os impactos dos ataques ao tráfego marítimo é apostar na dissuasão por meio do emprego do Poder Naval. Nesse contexto, a presença e atuação de navios de marinhas como a norte-americana e britânica são essenciais. “Assim, pode-se oferecer respostas rápidas e eficientes às mais diferentes formas de ameaças”, sublinha.
Desconectando
A ameaça ao transporte de cargas não é a única vulnerabilidade marítima explorada por grupos ou países que empregam táticas de guerra irregular, como a sabotagem. As comunicações globais são outra preocupação, tendo em vista que a quase totalidade do fluxo de informações via internet se dá por cabos submarinos. Segundo o portal TeleGeography, há cerca de 570 cabos de fibra óptica que, nos oceanos, conectam todos os continentes, com exceção da Antártica.
No dia 28 de fevereiro, um cabo submarino na região do Mar Vermelho, que conecta a Europa à Índia, e estava danificado, agora encontra-se sem perspectiva de conserto, visto que os reparos subaquáticos terão de ser feitos na região que está na mira dos Houthis. Já no dia 26 de fevereiro, quatro cabos de dados foram danificados pelos Houthis, afetando as telecomunicações entre Europa, África e Ásia.
Brasil x Pirataria
Na mesma área em que os Houthis atacam o transporte marítimo, o Brasil tem sido protagonista na luta contra outra ameaça aos navios que trafegam na região: a pirataria. Desde o final de janeiro, o País passou a liderar a Força-Tarefa Combinada 151 (CTF-151), que atua contra as atividades ilegais no Golfo de Áden, Bacia da Somália e Mar da Arábia. Esta é a terceira vez que o País assume o comando da Força-Tarefa, que está subordinada ao Comando das Forças Marítimas Combinadas (CMF), a maior coalizão naval do planeta.
Por conta da atuação dos Houthis, a situação é considerada muito mais tensa e perigosa do que em outras ocasiões em que o Brasil esteve à frente da coalizão, conforme relatou o Contra-Almirante Antonio Braz de Souza, atual Comandante da CTF-151. “O conflito no Oriente Médio criou um ambiente de segurança volátil que se estende além das fronteiras territoriais. Tal instabilidade gerou um efeito cascata na segurança marítima do Oceano Índico”, destaca o Almirante brasileiro.
Na CTF-151, o Brasil comanda dois navios, além de 23 militares de Estado-Maior de dez outras nações, na base norte-americana, localizada no Bahrein, reportando-se ao chefe da CMF, um Almirante da Marinha dos Estados Unidos da América (EUA). A Força-Tarefa é um dos cinco braços da CMF, formada por 41 países e organizada para promover o combate à pirataria, bem como a segurança e estabilidade em aproximadamente 3,2 milhões de milhas quadradas de águas internacionais, que abrangem algumas das rotas marítimas mais importantes do mundo, destacando-se o Mar da Arábia, Golfo de Omã, Golfo de Áden e o Mar Vermelho.
“Para os primeiros seis meses de 2024, período em que a Marinha do Brasil (MB) comanda o CTF-151, é esperado um aumento no número de tentativas de pirataria dentro da área de atuação, tendo esta tendência já se iniciado desde novembro de 2023, quando houve a primeira tentativa após uma supressão de quatro anos”, ressalta o Almirante Braz de Souza.
O Almirante conta, ainda, que o País, sendo o primeiro Sul-Americano a participar da missão, demonstra o seu protagonismo na comunidade marítima internacional ao enviar, sistematicamente, pela MB, um representante nacional sênior, e ao disponibilizar militares qualificados para compor as forças-tarefas.
“A MB busca, constantemente, o incremento da Consciência Situacional Marítima (CSM) com vistas a cumprir a sua missão. Nesse sentido, a possibilidade de um intercâmbio operativo em um ambiente tão complexo e dinâmico certamente contribui para ampliar a CSM, preparar e especializar o pessoal, bem como aprimorar a técnica militar voltada para a defesa naval e a cooperação à repressão aos ilícitos no mar”, relata o coordenador da Força-Tarefa Conjunta 151.
Recentemente, a Marinha do Brasil estabeleceu novos princípios doutrinários, organizando sua atuação em campos como a Segurança Marítima, que prevê ações para implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos por meio do emprego coercitivo do Poder Naval ou uso limitado da força, incluindo o combate a delitos transfronteiriços, ambientais e outras atividades ilícitas, tais como a pirataria e o terrorismo.
Conflitos modernos
Para o Contra-Almirante Guilherme Mattos de Abreu, membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e colaborador do Centro de Estudos Políticos-Estratégicos da Marinha, as ações dos Houthis no Mar Vermelho são ameaças com “nova configuração, em face de os agentes envolvidos utilizarem meios sofisticados como sensores, helicópteros, mísseis e drones”.
“Assim, contrastam significativamente com o modus operandi dos esquálidos piratas somalis. Esta nova configuração da ameaça traz dificuldades adicionais para o seu enfrentamento, que é muito custoso e complexo, demandando um nível de prontidão extenuante para as unidades envolvidas, dado o curto tempo necessário de reação”, afirma.
Sobre esse nível de prontidão, agora em relação ao conjunto de ameaças à segurança marítima, o Almirante ressalta que a MB já realiza ações de amplo espectro, dentre elas, o acompanhamento do tráfego marítimo, vigilância, presença, e o treinamento continuado. “Cabe destacar que, considerando a amplitude geográfica de nossa área de interesse, não é apenas o Poder Naval brasileiro que está envolvido, ou seja, necessariamente, tem que existir uma agenda de cooperação entre diversos países”, conclui.