Os EUA vêm ampliando a produção de armas nucleares táticas e podem fazer de Taiwan o primeiro lugar a serem testadas. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que a medida pode agravar a já acirrada situação no Sudeste Asiático.
Melissa Rocha | Sputnik
Os Estados Unidos vêm apostando na produção de armas nucleares táticas, anunciadas como de baixo impacto, desde 2018, quando Washington apresentou sua nova estratégia nuclear para os próximos anos.
A decisão de investir nesse tipo de armamento contraria tratados de não proliferação de armas nucleares e foi tomada sob a alegação de conter a ameaça da Rússia. Em novembro de 2023, em um relatório publicado pelo think tank americano Atlantic Council, o ex-encarregado de capacidades estratégicas do Estado-Maior dos EUA, Greg Weaver, sugeriu o uso de armas nucleares táticas como forma de conter uma suposta invasão chinesa da ilha. Seria a primeira vez que esse tipo de armamento seria usado.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam como o envio de armas nucleares dos EUA a Taiwan pode afetar a tensão no Sudeste Asiático, que impactos um conflito com esse tipo de armamento poderia gerar no mundo e por que o aumento da produção de armas atômicas por parte de Washington vem passando fora do radar dos noticiários.
Quais os impactos do envio de armas nucleares táticas dos EUA a Taiwan?
Alana Monteiro Leal, pesquisadora de estudos estratégicos e segurança internacional da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e de ciência política e relações internacionais, destaca que em 1979 EUA e Taiwan firmaram um acordo no qual "os EUA são obrigados a fornecer armamentos e proteção, de quaisquer formas, a Taiwan".
"Além do fluxo de investimentos vindo do Ocidente, a figura dos EUA na Ásia é um peso contrabalanceador ao maior ator econômico asiático, que é a China, sendo, portanto, uma tensão dupla na região, além de países parceiros que apoiam o posicionamento da China no conflito interno."
Ela afirma que a situação é acirrada por constantes exercícios militares nos arredores de Taiwan, que ela classifica como "um pilar delicado na região", bem como por declarações de Pequim mais incisivas quanto à interferência dos EUA na ilha.
"Há uma declaração do ministro das Relações Exteriores chinês em que se mostra aberto a um conflito direto com os EUA se permanecerem interferindo nessa questão com Taiwan, por considerar uma afronta direta às suas questões nacionais", explica a pesquisadora.
Porém a aposta dos EUA no uso de armas nucleares táticas em Taiwan ameaça elevar a tensão em uma região já bastante volátil do globo, como aponta Alana Camoça, professora de relações internacionais e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Ásia (LabÁsia), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Qualquer ação que vise fortalecer as capacidades de Taiwan do ponto de vista militar tem a possibilidade de estimular ainda mais os dilemas de segurança na região do Leste Asiático como um todo. Afinal, não somente a China aumentaria suas percepções de ameaça em relação à presença dos Estados Unidos na região, o que poderia estimular o aumento dos seus investimentos em suas capacidades militares, como alguns países vizinhos receariam pela escalada militar e também se armariam ou buscariam garantias estratégicas por parte dos Estados Unidos em caso de conflito geral."
Como a estratégia de Washington pode afetar a Coreia do Norte?
A Coreia do Norte é um dos principais atores políticos da região, principalmente no que diz respeito ao acirramento da retórica nuclear.
Questionada sobre qual seria a possível reação norte-coreana diante da estratégia americana em Taiwan, Alana Monteiro sublinha que recentes declarações do governo norte-coreano "já repudiam a presença dos Estados Unidos na região, pelo histórico de interferência em assuntos internos e soberanos dos países da comunidade internacional".
"A Coreia do Norte apoia declaradamente a China em seus assuntos internos, assim como outros países circunvizinhos, como a Rússia."
Alana Camoça, por sua vez, se mostra cética quanto à possibilidade de uma reação mais violenta da Coreia do Norte.
"Apesar de ser possível uma reação da Coreia do Norte, do meu ponto de vista ela geraria no máximo algumas denúncias por parte das lideranças norte-coreanas e talvez alguns testes de mísseis para demonstração de poder na região", explica.
Segundo a pesquisadora, a principal reação a ser observada seria de fato da China, que tem buscado modernizar seu aparato militar e fortalecer suas capacidades A2/AD, como é conhecido o conceito da estratégia militar antiacesso e de negação da área, "ainda que de forma relativamente lenta, se considerarmos as preocupações do país em relação à presença dos Estados Unidos no seu entorno estratégico".
"Os EUA têm construído, através de suas alianças bilaterais na região, uma espécie de rede entre os países para contrabalançar a ascensão chinesa, o que tem aumentado as percepções de ameaça na região. Dessa forma, o Leste Asiático como um todo é uma zona de potencial conflito", afirma a pesquisadora.
Se os EUA investem em armas nucleares, por que o ônus do acirramento é dado à Rússia?
Na semana passada, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou, mais uma vez, que está comprometido a não acionar o arsenal nuclear da Rússia para ataques, restringindo o uso apenas para defesa. Apesar da afirmação, líderes ocidentais acusam Moscou de protagonizar uma escalada nuclear.
Segundo Alana Monteiro, isso ocorre pela desconfiança do Ocidente em relação à Rússia e por conta do alinhamento de Moscou com Pequim.
"A Rússia sempre demonstrou apoio formal às questões internas da China, enquanto principal parceiro e [pela] maior proximidade na região, fatores determinantes de análise. A Rússia hoje ser o país com maior posse de armamentos nucleares também é um fato de tensão a qualquer possibilidade de conflito na qual esteja direta ou indiretamente envolvida."
Já Alana Camoça chama a atenção para "os elementos materiais que estruturam o poder dos Estados, como no caso do poder militar, dos recursos disponíveis, do território, do poder econômico e financeiro".
"Também é essencial compreender quem é o país capaz de influenciar as regras, as normas e as narrativas no cenário internacional. Os Estados Unidos alicerçaram seu poder na construção de uma ordem internacional pautada em determinados valores considerados 'universais', ao mesmo tempo em que reforçaram narrativas que dividiam o mundo entre Norte e Sul, desenvolvido e subdesenvolvido, e entre atores que se alinhavam à ordem ou eram rebeldes em relação a ela", explica a pesquisadora.
Nesse contexto, ela sublinha que "não é uma questão nova a Rússia ser tratada de forma crítica e percebida como uma ameaça pelos Estados Unidos" e aponta que a própria continuação da existência e o alargamento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que são essenciais para entendermos as causas do conflito ucraniano, demonstram essa dinâmica.
"As ações dos Estados Unidos recebem apoio da rede dos principais meios de comunicação controlados pelo próprio país. Nesse sentido, o país consegue criar narrativas que frequentemente são vistas como legítimas e justificadas. Além disso, graças às suas próprias capacidades militares e às estruturas estabelecidas desde o final da Segunda Guerra Mundial, embora algumas delas estejam em deterioração, os Estados Unidos mantêm uma ampla rede de aliados que compartilham da visão de que é mais interessante manter a ordem e o status quo do que revisá-los", explica a pesquisadora.
"Ao rotular a Rússia e a China como revisionistas, conforme evidenciado na NSS [Estratégia de Segurança Nacional, na sigla em inglês] de 2017, os Estados Unidos reforçaram a ideia de que existem países que buscam destruir a ordem estabelecida e, portanto, precisam ser alvo de atenção e preocupação pelos Estados Unidos. Dessa forma, as ações de Washington são propagadas como legítimas e relacionadas à defesa de uma determinada ordem baseada nas visões 'liberais' dos Estados Unidos", complementa.
Alana Camoça afirma que, em suma, "o poder dos Estados Unidos não é apenas econômico e militar (material), também é discursivo (imaterial) e se sustenta muito pelas próprias instituições internacionais por ele criadas".
"Cabe ressaltar ainda que os Estados Unidos têm uma enorme capacidade de alcançar as pessoas via conteúdo midiático-cultural, o que também constrói essa narrativa do país como uma liderança que busca preservar a ordem e a paz na arena internacional."
Quais impactos um conflito com armas nucleares táticas pode ter no mundo?
Se as armas nucleares táticas têm baixa potência, como afirma o governo americano, qual poderia ser a magnitude do impacto de um possível conflito com esse tipo de armamento? Para ambas as especialistas, haveria risco de um conflito com proporções globais, com envolvimento da OTAN.
"Com o transbordamento a nível regional e a presença e contribuição de outros países do eixo euro-asiático, o impacto seria projetado a nível global rapidamente, com interferência direta dos países da OTAN", afirma Alana Monteiro.
Alana Camoça afirma que "as armas nucleares táticas são frequentemente caracterizadas por seu alcance e uso para alvos militares limitados, mas possuem um potencial de destruição significativo".
"Entender a questão das armas nucleares táticas e os motivos que levam às possíveis ações dos Estados Unidos na região implica compreender a questão da dissuasão. A dissuasão é geralmente definida como uma estratégia que visa desencorajar os Estados a tomarem ações indesejadas, especialmente a agressão militar. Ou seja, deve ser vista como um esforço para moldar o pensamento de um potencial agressor."
Ela afirma que, em certa medida, as armas nucleares táticas existem devido à ideia de que cada lado seja desencorajado de utilizar suas armas de destruição em massa devido à sua extrema capacidade destrutiva. Nesse contexto, "ao tornar as armas nucleares menores e o direcionamento mais preciso, seu uso se torna um pouco mais concebível".
"Paradoxalmente, enquanto isso aumenta a credibilidade das ameaças de dissuasão, também as torna mais tentadoras para serem usadas em primeiro lugar (first use), em vez de apenas em resposta a uma ação adversária. Entretanto, ninguém deveria imaginar que usar uma arma nuclear tática efetivamente faz sentido. Nesse ponto, as armas nucleares táticas podem ter um impacto na dissuasão, negativo e positivo", explica.
Alana Camoça acrescenta que mesmo uma arma nuclear de baixa capacidade produziria danos muito além dos de um explosivo convencional.
"Uma arma nuclear tática produziria também radiação mortal que causaria danos à saúde em longo prazo nos sobreviventes. A precipitação radioativa poderia contaminar o ar, o solo, a água e o suprimento de alimentos. Uma guerra com armas nucleares táticas seria uma guerra destrutiva e extremamente nociva para as regiões que fossem palco", diz a pesquisadora.
"Cabe ressaltar, por fim, que não é evidente que uma ameaça dissuasora baseada nessas armas nucleares táticas tenha o impacto desejado por Washington sobre Pequim. Afinal, tal política pode desencadear escalonamentos e já será vista como perigosa e provocativa, alarmante para aliados e aumentando as tensões regionais", conclui.