O mundo pós-pandemia tem sido marcado pela expansão recorde dos gastos militares em todo o globo, apontou o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) na última semana. Diante do acirramento de tensões e conflitos mundo afora, os gastos militares alcançaram US$ 2,2 trilhões (R$ 10,8 trilhões), o maior desde a Segunda Guerra Mundial.
Lucas Morais e Rennan Rebello | Sputnik
Valor que só não é superior ao produto interno bruto (PIB) das sete maiores economias do mundo, o setor de defesa nunca viu investimentos tão grandes no século XXI como os feitos no ano passado.
Do Oriente Médio à Europa, da África à Ásia e até na América do Sul, que até então é vista como um oásis em meio aos conflitos mundiais, as tensões entre os países têm sido uma marca da era pós-pandemia, a partir de 2022. Em meio a esse cenário, como tem se comportado o Brasil, considerado a maior potência militar da América Latina e do Caribe?
O professor da UniRitter e pesquisador do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) João Gabriel Burmann lembra à Sputnik Brasil que o estudo do IISS mostrou que o país é o 14º no mundo em orçamento militar e, comparado às demais nações latinas, gasta quase quatro vezes mais do que a segunda colocada.
"São quase US$ 24 bilhões [R$ 118,2 bilhões], muito superior ao orçamento do México, com cerca de US$ 7,8 bilhões [R$ 38,4 bilhões]. Estamos empatados [no ranking global] com o Canadá, e isso já mostra a importância e todo o poderio, além da necessidade do Brasil de manter esses gastos altos por vários motivos", enfatiza.
Porém, na corrida militar regional, o crescimento dos recursos destinados à área militar por outros países, quando comparado ao brasileiro, tem sido superior. "Não temos crescido tão fortemente, se comparado com outros países, e isso também tem sido um pouco mais chamativo. Ocorre por vários motivos, como a necessidade de modernização das Forças Armadas dos nossos vizinhos, que são bastante defasadas, especialmente Argentina e Uruguai. Mas também temos forças já modernizadas, a exemplo do Chile e da Colômbia, que acabam tendo necessidades de manter um alto nível de aquisições de sistemas militares para garantir esse patamar" acrescenta.
Mesmo assim, o Brasil ainda concentra cerca de 44% das despesas com as Forças Armadas em toda a América Latina e o Caribe, enquanto vizinhos sul-americanos como a Argentina não chegam a 6%, abaixo do Chile (8%) e da Colômbia (10%).
“O Brasil tem a necessidade de manter esses gastos altos por vários motivos. Um dos principais é a grande quantidade de pessoal [das três Forças Armadas] e também as funções constitucionais de defesa, que é a presença em todo o território brasileiro, seja aéreo, terrestre ou marítimo. Então esses valores são realmente portentosos."
Qual o orçamento das Forças Armadas do Brasil?
Só no ano passado, o orçamento para a área de defesa brasileira chegou a quase R$ 125 bilhões, e 78,2% desse total foi destinado às despesas com pessoal, como o pagamento de salários, benefícios, encargos, aposentadorias e pensões. Só na ativa, são cerca de 360 mil militares, além de outros 1,3 milhão da reserva. Para o pesquisador João Gabriel Burmann, é um percentual muito elevado para custeio, "especialmente considerando que o país" não está envolvido em nenhum conflito militar no globo.
"Boa parte desses gastos são para pagar aposentadorias e pensões, muitas vezes que sequer são militares, mas parentes até de segunda geração. Então é um problema que eu acredito que o Brasil deveria abordar, mas que não há muitas perspectivas de conseguir discutir isso, uma vez que os militares possuem boa influência política, cada vez mais crescente, inclusive com pessoas do meio sendo eleitas [principalmente no Congresso Nacional]", acredita.
Segundo o especialista, há uma "incompatibilidade" desses gastos com as capacidades orçamentárias do país, que ainda necessita investir em modernização, melhoria tecnológica e cooperação das Forças Armadas em missões ao redor do globo.
"Na hora de aumentar os gastos ou de propor orçamento para isso, todos os outros setores da economia apontam que os recursos para a área já são enormes, mas nunca se fala da maioria esmagadora de dinheiro que vai para gastos com pessoal. Não é com modernização, investimento e pesquisa. Então é uma coisa que parece um pouco incompatível, e o país precisa abordar isso para que possa, enfim, viabilizar tudo aquilo que se propõe [ao setor de defesa]".
Quanto do PIB vai para as Forças Armadas?
Nas últimas décadas, os gastos brasileiros com as Forças Armadas em relação ao PIB ficou entre 1,2% e 1,4%, muito abaixo da média mundial de 2,2%. No fim do ano passado, o Congresso Nacional iniciou as discussões da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que destina no mínimo 2% do PIB do país para a área de defesa, o que, segundo a proposta, garantiria maior previsibilidade orçamentária.
Porém, mesmo diante do maior investimento militar da história desde a Segunda Guerra Mundial, o professor João Gabriel Burmann acredita que o estudo divulgado pelo IISS terá pouca influência em acelerar as discussões e a eventual aprovação da proposta. "A nossa capacidade de articulação do setor acadêmico e do setor de defesa com o mundo político ainda é pouco qualificada para conseguir argumentos a partir disso. Então eu acho que essa questão da PEC vai ficar muito mais a cargo da disputa de poder do dia a dia [entre os parlamentares] e das relações da capacidade de influência do governo. A ideia da PEC não é necessariamente fazer frente aos nossos vizinhos ou qualquer outro tipo de ameaça", ressalta.
Além disso, o especialista pontua que o planejamento militar brasileiro evita usar qualquer termo relacionado ao crescimento de ameaças globais para justificar eventuais aumentos orçamentários. "Até porque esse raciocínio de percepção de ameaça no Brasil geraria dois problemas. Por um lado, o país tem pouco apelo para investimentos em defesa, uma vez que o país tem essa imagem de ser pacífico e não ter problemas, assim como um entorno estratégico [nações vizinhas] relativamente estável no último meio século. E o segundo é a questão da mensagem que isso passaria, do eventual aumento a partir da percepção de ameaças, [diferentemente de países nos outros continentes]", resume.
Qual é a defesa do Brasil?
Por fim, o professor da UniRitter e pesquisador do ISAPE avalia que o Brasil tem avançado na modernização da defesa, apesar da queda nos últimos anos. Conforme Burmann, os governos do PT, entre 2003 e 2016, procuraram desenvolver mais o setor brasileiro tanto em materiais quanto no desenvolvimento da industrial nacional.
"Os governos de Michel Temer [MDB] e de Jair Bolsonaro [PL], que tiveram uma presença crescente de militares no governo, não registraram esse movimento de modernização e de aumentar os gastos ou retomar projetos estratégicos, pelo contrário. Houve um contingenciamento de vários projetos, inclusive por suspeitas de envolvimento com grupos que foram investigados no âmbito da Lava Jato, como o caso do Prosub e outras áreas também que tiveram problemas pelo próprio modelo de negócios, a incapacidade ou a falta de estruturação das empresas brasileiras para lidar com isso", explica.
Outro exemplo dado pelo especialista é o caso da venda da Embraer, efetivada durante o governo Bolsonaro, porém a Boeing desfez o negócio com a maior empresa brasileira de defesa.
"O governo Lula tem procurado retomar essa ideia, não só através dos discursos e das visitas do próprio presidente, que já visitou ainda no ano passado a base de Itaguaí, onde está em processo avançado de construção do submarino de propulsão nuclear brasileiro, e que já foi para Portugal quando entregou lá o KC-390 para o governo português […]. O que eu acho é que o presidente precisa eventualmente ser um pouco mais ousado nessas declarações para que, enfim, possa retomar ou recuperar um pouco o protagonismo desse debate no que diz respeito à defesa no Brasil", finalizou.