Na reunião dos principais diplomatas no Brasil, Washington rebateu os crescentes apelos por um cessar-fogo imediato em Gaza
Por John Hudson | The Washington Post
RIO DE JANEIRO — A oposição dos Estados Unidos a um cessar-fogo imediato em Gaza foi alvo de repetidas críticas durante uma reunião de dois dias dos principais diplomatas das 20 maiores economias do mundo, no mais recente sinal do isolamento de Washington sobre o tema.
O secretário de Estado, Antony Blinken, participa da reunião de chanceleres do G-20 no Rio de Janeiro em 21 de fevereiro. (Bruna Prado/AP) |
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, anfitrião da reunião anual do G20 deste ano, começou a reunião criticando a "paralisia" no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde Washington vetou uma terceira resolução para um cessar-fogo imediato em Gaza no início da semana.
"Esse estado de inação resulta na perda de vidas inocentes", disse Vieira.
Os principais diplomatas presentes no encontro, que incluíram o secretário de Estado, Antony Blinken, e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, ofereceram suas opiniões sobre várias questões geopolíticas em uma sessão que foi fechada à mídia para que as autoridades pudessem se expressar com mais franqueza.
Mas, por engano, um pequeno grupo de jornalistas, incluindo do The Washington Post, pôde ouvir a sessão porque os fones de ouvido de áudio continuaram transmitindo os comentários, sem o conhecimento dos apresentadores brasileiros.
A Austrália, um aliado próximo dos Estados Unidos, apoiou um cessar-fogo imediato em Gaza e alertou fortemente sobre a "devastação adicional" que pode resultar da campanha militar anunciada por Israel na cidade de Rafah, no sul do país, onde mais de 1 milhão de palestinos deslocados buscaram abrigo.
"Dizemos novamente a Israel: não sigam por esse caminho", disse a representante da Austrália, Katy Gallagher. "Isso seria injustificável."
A África do Sul, que acusou Israel de realizar um genocídio em Gaza, uma acusação que Israel nega veementemente, disse que os líderes mundiais "permitiram que a impunidade dominasse".
"Falhámos com o povo da Palestina", disse Naledi Pandor, ministra das Relações Internacionais e Cooperação da África do Sul.
As declarações transmitidas acidentalmente criaram um forte contraste com a reunião do G-20 no ano passado na Índia, onde Blinken buscou unir potências mundiais na condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia. Na época, Blinken encontrou um público mais receptivo quando invocou a Carta das Nações Unidas e os princípios da soberania para criticar a grilagem de terras de Moscou.
Mas no Brasil, diplomatas invocaram esses mesmos princípios para criticar a guerra em curso em Gaza, para a qual os Estados Unidos forneceram cobertura política a Israel e bilhões de dólares em bombas e equipamentos militares.
"Se, por exemplo, estivéssemos unidos" em torno dos "princípios estabelecidos na Carta da ONU", disse o representante da África do Sul, "a tragédia na Palestina não terá durado mais de três meses".
Blinken disse a repórteres na quinta-feira que, apesar das fortes divergências sobre um cessar-fogo imediato, ele vê o G-20 como amplamente unido quando se trata de objetivos no conflito.
"Todos apoiam a tentativa de chegar a um acordo de reféns. Todos apoiam um cessar-fogo humanitário alargado. ... Todos apoiam encontrar uma maneira de acabar com o conflito", disse.
"Pode haver diferenças sobre táticas (...) mas estamos tentando nos concentrar em realmente obter resultados", acrescentou Blinken.
Mas analistas disseram que o contraste entre a posição global de Washington de um ano para o outro era gritante.
"Há um ano, os EUA tinham a Rússia com o pé atrás sobre a Ucrânia", disse Richard Gowan, especialista em assuntos multilaterais do International Crisis Group. "Agora, o governo Biden parece que está perdendo o controle sobre os eventos na Ucrânia e em Gaza, e pode perder o controle sobre as eleições de novembro também."
Entre os países latino-americanos, os Estados Unidos receberam um raro indulto durante as declarações da Argentina, cujo líder libertário recém-eleito, Javier Milei, é firmemente pró-Israel.
Embora reconheça que o conflito causou um "desastre humanitário", o representante da Argentina condenou os "atos terroristas do Hamas" e exigiu a "libertação incondicional dos reféns".
Autoridades dos EUA disseram que continuam focadas em trabalhar em direção às metas do Brasil para o G-20, incluindo coordenação sobre práticas trabalhistas, mudanças climáticas e segurança alimentar. Eles disseram esperar que as diferenças sobre Gaza não inviabilizem esses esforços, mas comentários do presidente do Brasil dias antes da chegada de Blinken comparando o assassinato de palestinos em Gaza ao genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial forneceram outro obstáculo.
Durante a reunião do chefe da diplomacia americana na quarta-feira com Luiz Inácio Lula da Silva, Blinken "deixou claro que discordamos desses comentários", disse um alto funcionário do Departamento de Estado, que falou sob a condição de anonimato para discutir uma discussão sensível de hora e meia entre os dois líderes. "Eu diria que os dois tiveram uma troca franca."
Como presidente do país mais populoso da América Latina e anfitrião do G-20, Lula assumiu um papel descomunal como uma voz do mundo em desenvolvimento quando se trata das guerras em Gaza e na Ucrânia, em ambos os casos criticando a oposição de Washington a um cessar-fogo imediato.
Na reunião, Blinken deixou clara sua opinião de que os Estados Unidos não apoiariam um cessar-fogo imediato porque deixaria o Hamas no lugar para repetir ataques contra Israel, disse o alto funcionário.
Autoridades de inteligência dos EUA dizem que as forças de Israel degradaram significativamente as capacidades do Hamas, mas estimam que não estão perto de eliminar o grupo após mais de 100 dias de guerra e quase 30.000 palestinos mortos, de acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza. O ataque começou em 7 de outubro, depois que combatentes do Hamas invadiram o sul de Israel, matando mais de 1.200 pessoas e fazendo cerca de 240 reféns.
Lula ponderou no domingo o grande número de vítimas civis na guerra, acusando Israel de realizar um "genocídio" e comparando-o a "quando Hitler decidiu matar os judeus".
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse nas redes sociais que Lula estava "banalizando" o Holocausto e "tentando prejudicar o povo judeu e o direito de Israel de se defender".
Blinken transmitiu a Lula os esforços dos EUA para intermediar um acordo entre o Hamas e Israel que envolveria a libertação de prisioneiros em troca de uma pausa humanitária nos combates e um aumento da ajuda humanitária.