Quando o último golpe de Estado no Brasil está próximo de completar exatos 60 anos, uma operação da Polícia Federal investiga se o país esteve na iminência de sofrer uma nova quebra institucional com ajuda do alto escalão militar.
Shin Suzuki | BBC News Brasil em São Paulo
O general da reserva Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, estão entre os alvos da operação realizada na quinta-feira (8/2).
O ex-presidente Jair Bolsonaro conversa com o general Luiz Eduardo Ramos, que foi ministro-chefe da Casa Civil de seu governo | GETTY IMAGES |
No dia seguinte foi divulgado um vídeo em que Heleno sugere "virar a mesa" antes da eleição presidencial e a infiltração de integrantes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na campanha do então pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A BBC procurou Braga Netto por meio do seu partido, o PL, e também Heleno, em seu celular pessoal, mas não havia obtido resposta até a publicação deste texto.
Para o historiador Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a constante presença dos militares em quebras institucionais ou ao menos planos para tal são fruto de interpretações do artigo 142 da Constituição e de suas versões anteriores.
O dispositivo sobre as Forças Armadas, que descreve os militares como "garantidores" dos poderes constitucionais, costumava ser bastante citado por apoiadores bolsonaristas e pelo próprio ex-presidente para invocar a "intervenção das Forças Armadas para restabelecer a ordem no Brasil".
Trata-se de uma intepretação rejeitada por juristas e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em uma liminar. Para Fico, o problema só será sanado se houver mudança no texto da Carta. "O governo Lula não tem força política para alterar essa aberração."
O historiador também critica o enaltecimento de parte do alto comando militar, que teria impedido a concretização de um golpe de Estado ao negar apoio ao suposto plano de ruptura sob investigação pela PF. "É um absurdo que a gente naturalize a possibilidade, mesmo que fracassada, de o alto comando do Exército discutir isso", diz.
Nos próximos meses, Fico terá reeditado pela editora FGV seu livro Reinventando o Otimismo: Ditadura, Propaganda e Imaginário Social no Brasil (1997), sobre propaganda política durante a última ditadura militar.
Ele trabalha atualmente em seu futuro livro, Utopia Autoritária Brasileira, que analisa todos os episódios de intervencionismo militar desde o fim da Guerra do Paraguai até hoje, que tem lançamento previsto para este ano e é voltado para o público não acadêmico.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista, que foi editada por razões de concisão e clareza:
BBC News Brasil - Na visão do senhor, por que esse suposto plano de golpe no âmbito das últimas eleições não foi consumado? Teria havido falta de consenso na alta cúpula militar?
Fico - Ainda vai demorar muito tempo para a gente saber por que o Alto Comando do Exército não apoiou as iniciativas golpistas. Isso, inclusive, é um aspecto terrível. Ouvi muitos analistas festejando o fato de a maioria do alto comando não ter apoiado o golpe, como se isso fosse um elemento a se festejar. É um absurdo que a gente naturalize a possibilidade, mesmo que fracassada, do Alto Comando do Exército discutir isso, que festejemos que a maioria preferiu não dar o golpe. Ou seja, a democracia brasileira estaria então nas mãos do Alto Comando do Exército. É isso? Então, nós estamos muito mal das pernas.
BBC News Brasil - O senhor foi crítico de uma estratégia de Lula sinalizando conciliação aos militares, principalmente no início do governo. Acredita que algo mudará nessa postura a partir de agora?
Fico - Eu já disse várias vezes, até em tom crítico realmente, que a nomeação do ministro [da Defesa José] Múcio tem a ver com essa estratégia de conciliação, que expressa esse temor reverencial em relação aos militares.
E também eu critiquei muito o governo Lula por ter aceitado aquela história de nomear os comandantes militares ainda durante o governo Bolsonaro [a posse dos definidos por Lula foi antecipada]. Com certeza isso foi muito ruim.
Agora, o que poderia fazer um governo eleito em meio a uma crise política tremenda com os militares? Porque o governo Bolsonaro foi um governo de muitas ameaças militares. Ainda mais com Lula obtendo uma votação que não foi a mais expressiva. De modo que claramente ele teria que fazer uma estratégia de conciliação. Então isso é mais uma frustração, vamos dizer assim, uma lamentação, do que propriamente uma crítica. Porque uma crítica teria que pressupor a possibilidade de ele fazer o contrário. E isso é praticamente impossível.
BBC News Brasil - O senhor acha que o risco de ruptura institucional está no momento controlado?
Fico - Esse risco no Brasil só vai ser controlado quando a gente tiver proeminência do poder civil em relação aos militares. Para que isso aconteça, como já falei, é preciso retirar do artigo 142 a determinação da garantia dos poderes constitucionais pelos militares. E enquanto isso não acontecer, os militares brasileiros vão se considerar com a atribuição de arbitrar e tutelar os poderes constitucionais.
Evidentemente que, neste momento preciso, a conjuntura política não favorece, de modo algum, uma ruptura institucional. A gente está no rescaldo de uma tentativa de golpe que está sendo investigada. Mas enquanto houver essa quase licença constitucional para intervencionismo militar, isso poderá acontecer. Vamos supor que um governante de extrema direita seja eleito novamente. Pode haver todo um apoio novamente para os militares. É preciso realmente pensar em termos estruturais, históricos. É preciso deixar de lado essa visão ingênua e otimista das instituições de que é só uma questão de interpretação equivocada [do artigo 142].
BBC News Brasil - Os acontecimentos da última quinta podem ser considerados históricos ao ter tantos militares, inclusive de alto escalão, como alvo de uma operação policial no Brasil?
Carlos Fico - É algo inédito porque nunca houve prisão ou investigação com bastante consequência para militares golpistas. Tradicionalmente, nas diversas tentativas de golpe de Estado no Brasil, as que fracassaram e as que foram efetivadas, nunca houve punição.
BBC News Brasil - O senhor sempre falou de um certo espírito de "temor" e "reverência" que há na sociedade brasileira em relação aos militares. Esse último episódio de alguma forma abala isso?
Fico - Esse episódio mostra que esse temor e reverência estão se abrandando. É algo positivo, porque outrora, em outras etapas da história brasileira, sempre houve uma certa leniência. Sobretudo com oficiais militares superiores e oficiais generais. Há um certo temor, uma certa reverência excessiva em relação a essas pessoas.
BBC News Brasil - Por que a ideia de intervenção militar como saída para os problemas do país há tantos anos tem bastante adesão na sociedade brasileira?
Fico - A Proclamação da República foi um golpe militar. Os dois primeiros presidentes foram militares e bastante autoritários. Os militares interpretaram a determinação constitucional republicana de garantia dos poderes constitucionais como sendo uma substituição do poder moderador do Império.
A Constituição de 1824 dizia que o imperador exercia o chamado poder moderador. Ele era o árbitro dos demais poderes. Então, se houvesse, por exemplo, um conflito, quem decidia era o imperador. A primeira Constituição republicana, de 1891, atribuiu às Forças Armadas uma série de competências tradicionais: defesa em caso de guerra etc e também a garantia de poderes constitucionais. Os militares interpretaram isso como sendo a substituição do velho poder moderador do Império. Isso foi se reproduzindo até hoje. Nós nunca conseguimos afastar essa infelicidade das diversas constituições republicanas.
BBC News Brasil - A invocação do artigo 142 da Constituição de 1988 por bolsonaristas durante manifestações é reflexo disso?
Fico - Reflexo não, é a reprodução literal do artigo 14 da Constituição de 1891 e de outros artigos das várias constituições republicanas desde então. Foi ficando em todas. E vai permanecer. O governo Lula não tem força política para alterar essa aberração. Sempre se tentou alterar, inclusive na Constituição de 1988, mas não foi possível por pressão de militares. Então os militares brasileiros têm essa interpretação de que eles são garantidores ou árbitros dos poderes constitucionais. Por isso esse poder tutelar, de que eles se acham investidos e que acabam exercendo porque detêm a força das armas. É por isso que a gente tem essa tradição de intervencionismo militar no Brasil.
BBC News Brasil - Em breve, o último golpe militar no Brasil completará 60 anos. Acredita que será uma oportunidade para uma nova reflexão sobre esse período?
Fico - Essa tradição de intervencionismo militar não vai mudar com o debate de ideias. Só vai mudar realmente com uma operação política e simbólica que consiste na alteração do artigo 142. Muita gente me diz: "Ah, mas isso é besteira. Até parece que se vai combater o golpismo com mudança de lei". Não é nada disso. O que precisa é enfrentar esse problema da interpretação que os militares dão à garantia dos poderes constitucionais. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem uma liminar dizendo que o artigo 142 não significa isso. A mesa da Câmara dos Deputados também tem um parecer formal negando que o artigo 142 seja sobre isso.
Mas não adianta. É preciso ter esse gesto político simbólico, de coragem, do Congresso Nacional, dizendo claramente que não compete às Forças Armadas a arbitragem das crises institucionais. Enquanto isso não acontecer, os militares brasileiros vão sentir que essa licença para intervir está constitucionalizada. É uma interpretação errada? Sim. Adianta a gente dizer que é uma interpretação errada? Não.
Os eventos dos 60 anos vão ser academicamente muito relevantes e eu vou participar de vários, mas não vão mudar a mentalidade dos militares.