Uma década após chegar ao poder, o general Abdul Fattah Al-Sisi se prepara para a reeleição no Egito.
Por Julia Braun | BBC Brasil em Londres
O pleito no país começa neste domingo (10/12) e se estende até terça-feira (12/12). O presidente é o favorito apesar da economia em rápido declínio e das críticas de parceiros ocidentais e grupos de direitos humanos ao autoritarismo do seu governo.
Nova sede do Parlamento do Egito na nova capital © Getty Images |
Al-Sisi também é o responsável pelo projeto ambicioso – e caro – de construção da nova capital do país no meio do deserto.
A cerca de 45 km a leste do Cairo, a nova cidade já tem um custo estimado de 50 bilhões de dólares e ainda não está totalmente finalizada.
Mas no resto do país, a população enfrenta uma inflação que bateu recorde em setembro deste ano, além de taxas de pobreza que não param de crescer, desvalorização da moeda local e um controle cada vez maior sobre a imprensa, redes sociais e manifestações populares.
'Meu ditador favorito'
O cenário atual contrasta enormemente com o sentimento que dominou o país após a Primavera Árabe, em 2011. O movimento levou à renúncia de Hosni Mubarak, que estava no cargo desde outubro de 1981.
Em junho de 2012, a população foi às urnas para escolher o novo presidente. A força que prevaleceu nas eleições foi a Irmandade Muçulmana, o maior e mais antigo grupo político islâmico do país, naquele momento representado por Mohamed Morsi.
Mas esse governo durou pouco mais de um ano e foi deposto por um golpe militar em julho de 2013. O general Al-Sisi, que comandou o golpe, está no poder até hoje.
Al-Sisi havia servido como ministro da defesa de 2012 a 2013 e como vice-primeiro-ministro de 2013 a 2014. Ele renunciou do Exército para concorrer às eleições, que ganhou com mais de 93% dos votos.
Observadores internacionais que acompanharam o pleito disseram que ele ficou aquém dos padrões internacionais de democracia, mas o novo presidente comemorou uma transição de poder "democrática e pacífica".
As eleições que levaram Al-Sisi ao segundo mandato, em 2018, também foram marcadas por acusações de fraude. Cinco potenciais adversários foram impedidos de concorrer e pelo menos 14 organizações de direitos humanos se juntaram para denunciar irregularidades.
"A lei determinada que um presidente não poderia servir por mais de dois mandatos, mas Al-Sisi está concorrendo pela terceira vez com base em uma exceção concedida após uma revisão da Constituição", explica Marco Pinfari, cientista político e professor da Universidade Americana do Cairo.
As tendências autoritárias do governo do general foram expostas pela organização sem fins lucrativos Freedom House, com sede nos Estados Unidos.
Segundo o instituto, que é referência em termos de estudo da democracia, uma oposição política é praticamente inexistente no país, uma vez que qualquer tipo de dissidência pode gerar processos criminais e prisão.
As liberdades civis, incluindo o acesso à internet livre, também são fortemente reprimidas. Mulheres, membros da comunidade LGBT e outras minorias são comumente vítimas de segregação e violência.
Grupos locais e internacionais de direitos humanos também estimam que o Egito mantém cerca de 60.000 presos políticos atrás das grades E a organização Repórteres sem Fronteiras contabilizou 19 prisões de jornalistas apenas em 2023.
Durante seu tempo no poder, o governo de Al-Sisi também proibiu a operação da Irmandade Muçulmana no país, que foi durante muito tempo a força de oposição mais poderosa. Atualmente seus líderes estão todos presos ou no exílio.
E segundo Marco Pinfari, os legados em termos de organização popular e revolução deixados pela Primavera Árabe já foram quase todos apagados.
Na realidade, de acordo com o pesquisador, boa parte da população desenvolveu uma visão negativa desse período da história do país diante das constantes declarações de Al-Sisi sobre as manifestações serem a causa dos atuais problemas políticos e econômicos egípcios.
Há ainda, segundo Pinfari, muitos cidadãos que se dizem saudosos do governo de Hosni Mubarak.
Por sua vez, o líder egípcio – que o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chamou de “meu ditador favorito” – diz ser a única pessoa capaz de manter a ordem no Egito.
“Esteja avisado, o que aconteceu há sete ou oito anos não se repetirá no Egito”, disse em 2018, em referência à Primavera Árabe. “Por Deus, o preço da estabilidade e segurança do Egito é a minha vida e a vida do exército”.
Em outra ocasião, em 2020, Al-Sisi disse que “é inapropriado retratar o estado do Egito como uma ditadura, com tudo que fez pelo seu povo e pela estabilidade na região”.
Para José Antonio Lima, professor da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), não há dúvidas de que Al-Sisi será reeleito no pleito desta semana.
"A política, do ponto de vista que a gente conhece no Brasil, praticamente não existe no Egito", diz. "Existe um Parlamento, uma imprensa, uma oposição e uma sociedade civil, mas todos atuam sob um regime extremamente autoritário e uma duríssima repressão."
Al-Sisi concorre contra três outros candidatos: Abdel Sanad Yamama, líder do nacionalista Partido Wafd, Hazem Omar, do Partido Popular Republicano, e Farid Zahran, que dirige o Partido Social Democrata Egípcio.
Yamama defende o lema “Salvar o Egito” porque, segundo ele, o país precisa ser salvo. Já os outros candidatos são vistos como tendo algum tipo de ligação com o atual governo e raramente fazem críticas ao regime.
Inflação, desemprego e apagões
O pleito estava marcado para acontecer só em 2024, mas foi adiantado em alguns meses.
Segundo Pinfari, uma das motivações para a antecipação foi a necessidade de garantir a reeleição do atual governante antes da adoção de uma série de medidas duras para tentar driblar a atual crise econômica, que já é considerada a pior em décadas.
O país chegou a um preocupante recorde de 38% de inflação em setembro deste ano e já desvalorizou a sua moeda, a libra egípcia, três vezes desde o início de 2022, diante da falta de reservas.
A aguda escassez de dólares tem reprimido as importações e causado acúmulo de mercadorias nos portos, com reflexos na indústria local.
O país tem ainda uma dívida pública de cerca de 92% do PIB, segundo o Fundo Monetário Internacional, que concedeu 5 bilhões de dólares em crédito para o Egito neste ano para equilibrar as balanças de pagamento e o orçamentos e manter a estabilidade econômica.
A crise atual é atribuída a diversos fatores, alguns que datam de décadas e outros mais recentes.
"O regime autoritário se sustenta às custas de vários setores da economia, seja por meio de empresas que são diretamente ligadas aos militares ou de empresas que tem uma face civil, mas são controlados por militares da reserva", diz José Antonio Lima.
"Patrimônios ou contratos estatais são entregues para setores que vão garantir a sustentação do regime, mas esse sistema impede ou dificulta muito a inovação e a geração de empregos. Isso aprofundou o quadro econômico do Egito que já era precário em 2011."
A pandemia de covid-19 e o impacto que teve no turismo também foi extremamente prejudicial para o Egito, que em 2019 tinha 8,5% do seu PIB concentrado no setor.
O professor Marco Pinfari explica também que uma das principais raízes da escassez de reservas e declínio da moeda local é a guerra na Ucrânia.
"A Ucrânia e a Rússia são dois dos principais países de origem dos turistas que visitam o Egito", diz.
"A guerra também levou a um aumento substancial no preço do trigo, do gás natural e do petróleo, para os quais o Egito dependia muito da Ucrânia e da Rússia."
No âmbito social, as taxas de desemprego chegaram a 7,1% em setembro deste ano. E cerca de 30% da população vive em situação de pobreza, segundo dados do próprio governo, que podem se provar muito menores do que a realidade.
Marco Pinfari vive no Cairo e afirma outra consequência da crise são os apagões constantes, que se tornaram um símbolo do momento vivido pelo Egito.
"São cerca de duas horas de apagões por dia, além dos apagões programados. Costumava ser um por dia até algumas semanas atrás", relata.
Segundo o especialista, além de prejudicar o dia a dia da população, os cortes de energia tem repercussões na economia, especialmente no fornecimento de produtos básicos como cebola e açúcar, no mercado local.
Em agosto, o Egito foi anunciado como novo membro dos Brics, formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e há expectativa de que isso ajude a aliviar a escassez de moeda estrangeira e atrair novos investimentos.
Mas analistas dizem que pode levar algum tempo até que quaisquer benefícios apareçam.
A nova capital
Mas mesmo em meio ao drama econômico, continua a construção da chamada Nova Capital Administrativa. Diversos ministérios já foram deslocados para a cidade e outras muitas instalações do governo já estão prontas.
O projeto divulgado inicialmente previa ainda lagos artificiais, um parque com o dobro do tamanho do Central Park, de Nova York, escolas e universidades, hospitais, centenas de mesquitas, a maior igreja do país, um parque temático e um aeroporto.
Entre os objetivos do projeto está aliviar o congestionamento e poluição no Cairo, além de criar novas opções de moradia.
A atual capital tem cerca de 22 milhões de pessoas vivendo em cerca de 3 mil quilômetros quadrados- e a previsão é que chegue aos 40 milhões em 2050.
Para efeito de comparação, a região metropolitana de São Paulo tem cerca de 22,6 milhões de habitantes, só que em uma área de quase 8 mil quilômetros quadrados.
Mas segundo especialistas, a nova capital também é usada pelo governo como propaganda, especialmente antes das eleições.
"O Egito sempre foi um país central do Oriente Médio, principalmente depois da formação estatal entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, assim como um polo cultural - o sotaque egípcio e as expressões próprias usadas no país são conhecidas na região inteira", diz José Antonio Lima.
"Mas essa é uma condição que vem sendo perdida ao longo do tempo e uma das formas de atuação do regime é tentar reivindicar esse passado e revigorar a imagem de grandiosidade do Egito."
Em janeiro deste ano, Al-Sisi se defendeu das críticas sobre os custos dos projetos de infraestrutura conduzidos pelo seu governo e disse que eles não são a causa da crise econômica.
“Se não tivéssemos desenvolvido o Canal de Suez, como a renda dele teria chegado a 8 bilhões de dólares 7 anos depois?", questionou. "Não trabalhamos em nada sem importância ou cometemos erros de cálculo”.