Foram 146 decretos assinados pelos sete presidentes eleitos que governaram o País desde a redemocratização; FHC e Lula são os recordistas no acionamento aos militares; ‘É uma maneira de empoderar os militares para além dos seus próprios poderes já previstos na constituição’, diz especialista
Por Weslley Galzo | O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Os sete presidentes que governaram o País desde 1992 optaram por entregar aos militares a gestão de crises na área de segurança pública. Levantamento do Estadão mostra que, nos últimos 30 anos, os decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) se tornaram uma muleta para enfrentar a criminalidade em detrimento de políticas públicas e serviram mais para empoderar os militares.
Os dados do Ministério da Defesa mostram que as Forças Armadas conduziram 146 operações do tipo. O recordista é Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que assinou 46 decretos nos oito anos em que governou o País. O atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem logo em seguida, com 41 durante os seus três mandatos.
Na última quarta-feira, 1º, Lula assinou a primeira GLO do seu terceiro mandato. O decreto autoriza o emprego do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. A medida foi assinada apenas quatro dias depois de o presidente dizer que, enquanto ocupar o Palácio do Planalto, “não haverá GLO”.
“Eu não quero as Forças Armadas nas favelas brigando com bandido. Não é esse o papel das Forças Armadas e, enquanto eu for presidente, não tem GLO. Eu fui eleito para governar esse país e vou governar”, justificou Lula antes de recuar da declaração.
Para o coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes, o protagonismo de FHC e Lula no topo da lista dos presidentes que mais decretaram GLOs não se restringe ao fato de terem sido os únicos a exercer até o fim os mandatos consecutivos para os quais foram eleitos. Ele, que também é doutor em ciência política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), avalia que a aplicação das Forças Armadas na segurança pública se tornou a resposta fácil e rasa do governo federal às sucessivas crises de violência urbana no País.
“Tanto para a esquerda quanto para a direita essa carta das Forças Armadas está sempre à mesa para dar uma resposta simples que não trata da questão que se impõe: Qual é o papel do governo federal na segurança pública?”, disse. “As Forças Armadas acabam sendo uma força auxiliar das policiais estaduais e não o contrário, como dispõe a Constituição”, destacou.
O levantamento do Estadão mostra que o uso das GLOs não se restringe a responder aos casos de violência. Os grandes eventos de interesse nacional são um dos poucos exemplos em que os militares atuam em situações relacionadas à sua formação. Os decretos assinados com essa finalidade abrangem 26,7% do total. Outra área em que a atuação das Forças Armadas é constante é no período eleitoral, quando eles conduzem as chamadas operações de Garantia da Votação e Apuração (GVA), que compreendem 16,4% do total.
Mas são os assuntos relacionados à segurança pública que dominam a atuação dos militares nas GLOs. Nos últimos 30 anos, 16,4% dos decretos mobilizaram as tropas para conter a escalada da violência urbana e outros 17,8% foram assinados para intervir nos Estados afetados por greves de policiais militares. No total, isso equivale a um terço das ações.
O restante das GLOs realizadas são categorizadas pelo Ministério da Defesa como “outros”, o que abrange desde a atuação em desastres ambientais à intervenção nos arredores de presídios em rebelião – cenário também relacionado à segurança pública.
Na avaliação de Rafael Alcadipani, professor de segurança pública na Fundação Getúlio Vargas (FGV), a quantidade de decretos editados nos últimos anos demonstra “a completa falência do Estado brasileiro” em lidar com a violência.
“O Estado brasileiro é completamente incompetente para tratar da segurança pública de forma estratégica e inteligente, de tal sorte que isso (GLO) não seja necessário”, afirmou. “É um problema antigo para o qual o governo não parece encontrar solução”, prosseguiu. “Basta ver quanto dinheiro foi jogado no lixo na GLO do Rio de Janeiro sem que tenha melhorado nada”, completou.
Para Alcadipani, mesmo a atuação dos militares nas eleições é parte de um grave cenário de segurança, pois envolve a presença das tropas em locais dominados por milícias e pelo crime organizado, onde os governos estaduais não conseguem atuar normalmente.
GLOs aumentam o poder das Forças Armadas
Os especialistas ouvidos pelo Estadão ainda apontaram que a presença recorrente das Forças Armadas em conflitos urbanos de responsabilidade das polícias revelam o empoderamento dessa categoria mesmo antes do papel assumido durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Acionar militares em momentos de desordem urbana, como são muitos dos casos de GLO, é uma maneira de empoderar as instituições militares para além dos seus próprios poderes já previstos na constituição”, afirmou Nunes. “O fato de a gente ter em média cinco GLOs por ano nesse período demonstra que o Brasil tem uma questão na área de segurança pública que foi negligenciada e que segue mostrando a insuficiência do desenho institucional da Constituição de 1988 para lidar com as questões”, completou.
Quando os militares são chamados a resolver problemas fora de sua alçada, a mensagem transmitida à população é de que a instituição goza de prestígio e capacidade de lidar com a situação, o que nem sempre condiz com a realidade, explicou Alcadipani. “É muito mais uma questão de marketing daquele momento, de uma tentativa de dar uma resposta para a opinião pública, de aparência, do que algo que essencialmente resolve as coisas”, afirmou.
A intervenção federal realizada no Rio de Janeiro, em 2018, durante a gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB), colocou militares de alto escalão mais uma vez sob a mira das autoridades. A Polícia Federal (PF) investiga se houve sobrepreço na compra de coletes balísticos. Um dos alvos da operação é ex-ministro do governo Bolsonaro e general Walter Braga Netto.
“É preocupante que esses expedientes dão uma ideia de que algo está sendo feito na segurança pública, mas a gente está se afastando do trabalho real que é pensar nesse desenho estrutural”, destacou Nunes.