Almirante Olsen diz à coluna que efeitos do ajuste fiscal põem em risco até os recursos necessários para combustível e munições e apresenta a lista das embarcações que serão encostadas
Por Marcelo Godoy | O Estado de S.Paulo
A Marinha do Brasil está em crise e precisa de investimentos. E rápido. Uma força armada pressupõe capacidade de causar dano. Em cinco anos, a Força Naval brasileira terá de aposentar 40% de suas embarcações, deixando as costas brasileiras sujeitas a ameaças de potências estrangeiras. Pior. Os efeitos do ajuste fiscal do governo ameaçam até os recursos necessários para combustível e munições. De R$ 79 milhões necessários para recompor a munição da Marinha, só R$ 6,8 milhões foram alocados em 2023. Ela só recebeu ainda 57% do combustível mínimo para manter seus navios se deslocando, sem o qual não é possível dissuadir as ameaças à segurança do País. O alerta é do comandante da Força Naval, o almirante Marcos Sampaio Olsen, em entrevista à coluna.
O almirante Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha em cerimônia no Ministério da Defesa, em Brasília | Foto: Marinha do Brasil |
A Marinha deixou de receber R$ 3,3 bilhões para a manutenção de seus investimentos nos últimos cinco anos e, agora, coleciona 43 embarcações à beira do fim da vida útil. São meios de defesa e patrulha costeira e dos rios e hospitais, que atendem da Amazônia ao Pantanal. O primeiro deve ser um navio de desembarque de força anfíbia. O impacto só não será maior porque a Força deve receber – se não houver novos atrasos – 12 novas embarcações nesse período, entre as quais quatro fragatas e três submarinos convencionais.
Olsen também prevê diminuir o pessoal militar de carreira em troca de temporários e defende a realização de concursos para preencher as vagas de civis como forma de reduzir os custos com pessoal da Força. As perguntas para o almirante foram formuladas pela coluna há quatro meses. O comandante entregou as respostas por escrito após o término da CPI dos atos do dia 8 de janeiro. Elas mostram que a prioridade da Força é não só buscar a normalização das relações com o Poder Civil, mas também seu esforço em obter recursos para seus projetos estratégicos.
A seguir, a entrevista do comandante.
Almirante, 40% dos meios da Marinha devem ser desativados até 2028. Quantas embarcações deverão ser desativadas e qual o impacto disso em relação ao conjunto de embarcações da Força Naval e nas atividades atualmente desempenhadas?
Almirante, 40% dos meios da Marinha devem ser desativados até 2028. Quantas embarcações deverão ser desativadas e qual o impacto disso em relação ao conjunto de embarcações da Força Naval e nas atividades atualmente desempenhadas?
A disponibilidade de meios operativos – navios, aeronaves e meios de Fuzileiros Navais – é uma variável que deve ser analisada com base no fator tempo. Em razão do limite da vida útil, 43 embarcações da Marinha do Brasil devem ser desativadas até 2028, o que corresponde a aproximadamente 40% dos meios operativos da Força. Essa expectativa pode sofrer variações de acordo com avaliações técnicas da estrutura e das condições operativas dos navios, sem alterar significativamente, contudo, o quadro geral desse cenário. A baixa de um meio sem a correspondente recomposição pode implicar a degradação de capacidades da Força Naval e sua prontidão para atender a diversas tarefas previstas, em particular aquelas voltadas à defesa da soberania, à segurança marítima, ao atendimento de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e ao apoio às ações do Estado, como calamidades públicas, assistência às populações ribeirinhas e combate a crimes transfronteiriços e ambientais.
Quais são as embarcações e suas respectivas funções que devem dar baixa até 2028?
Serão avaliados quanto à extensão da vida útil seis navios da Esquadra, a ‘espinha dorsal’ do Poder Naval brasileiro. São três fragatas, que são navios-escolta empregados prioritariamente na Defesa Naval, mas que pela sua versatilidade realizam diversas tarefas em outros campos de atuação, inclusive em ações de apoio ao Estado. Há dois submarinos empregados primordialmente para negar o uso do mar a eventuais ameaças presentes no ambiente marítimo, e um navio de desembarque de carros de combate, o NDCC, que é um meio essencial para a realização de operações anfíbias e transporte administrativo de material e tropas militares, com possibilidade de emprego, inclusive, para atender a ações de apoio ao Estado. O NDCC Mattoso Maia será desativado em dezembro de 2023.
A desativação de meios operativos é um processo decisório complexo que depende de diversas variáveis, sendo pautado em avaliações técnicas e em requisitos da gestão do ciclo de vida. No período, cerca de 70% dos navios que compõem o atual inventário da Marinha serão submetidos à avaliação, pois atingirão o limite da sua vida útil programada. É com base nisso que se estima que as avaliações realizadas no período resultarão na desativação de cerca de 40% dos meios operativos da Marinha atualmente em operação em razão do seu estado de obsolescência.
Isso inclui ainda 29 navios distritais de 3.ª e 4.ª classes, entre eles, 12 navios-patrulha e quatro navios-patrulha fluviais. Eles são empregados em ações de segurança marítima, mas são fundamentais também em diversas ações de apoio ao Estado, como no atendimento à população por ocasião de catástrofes naturais e às comunidades ribeirinhas nas bacias amazônica e do pantanal. Nossa lista tem ainda três navios-varredores, que são utilizados em operações de contramedidas de minagem para manter livres da ameaça de minas o acesso aos portos e suas áreas marítimas adjacentes; três navios de assistência hospitalar, que levam assistência de saúde às comunidades ribeirinhas na região amazônica e no pantanal; três avisos de instrução, utilizados na formação profissional dos alunos da Escola Naval, os futuros oficiais da Marinha; e, por fim, 13 navios empregados em atividades hidroceanográficas, relacionadas à produção de informações sobre o ambiente marinho em prol da segurança da navegação, que contribuem para a salvaguarda da vida humana, o desenvolvimento nacional e aplicação do poder naval.
E quais são as embarcações novas e suas funções que a Marinha espera receber até 2028?
A Marinha deve receber as fragatas da classe Tamandaré, que serão navios-escolta versáteis e de expressivo poder de combate, capazes de se contrapor a múltiplas ameaças aéreas, submarinas e de superfície. Está prevista a entrega de quatro: a Tamandaré, que dá nome à classe, deve ser comissionada em dezembro de 2025; a fragata Jerônimo de Albuquerque, em 2027; a fragata Cunha Moreira, em 2028; e um ano depois a fragata Mariz e Barros. Esses navios, que estão sendo construídos no estaleiro Ocean, em Itajaí (Santa Catarina), comporão o núcleo do poder naval. A entrega de três submarinos da classe Riachuelo também está prevista nesse período. O submarino Humaitá, ainda neste ano; o Tonelero, em 2024; e o submarino Angostura, em 2025. Esses submarinos estão sendo construídos no complexo naval de Itaguaí. Em 2024, será ainda recebido o Navio de Assistência Hospitalar Anna Nery, que atuará no atendimento às populações ribeirinhas e na prestação de serviços médico-hospitalares nos Estados do Pará e do Amapá. Já o programa de obtenção de meios hidroceanográficos e de apoio antártico (PROHIDRO) prevê projetos de obtenção de navios hidroceanográficos, a serem empregados na Amazônia Azul e em águas polares para que a Marinha possa cumprir suas atribuições em sua atividades hidrográficas, oceanográficas, meteorológicas, cartográficas e de sinalização náutica, garantindo o suporte à aplicação do Poder Naval, além do apoio de transporte e logística à Estação Antártica Comandante Ferraz. Para tanto, está sendo construído no Estaleiro Jurong-Aracruz, no Espírito Santo, o navio polar Almirante Saldanha, que deve ser entregue em 2025. Ainda nesse período, a Marinha espera incorporar o navio-patrulha Mangaratiba, em construção no arsenal de Marinha, no Rio, com previsão de entrega para 2025, além de dois navios-patrulha de 500 toneladas contemplados pelo novo PAC. Esses meios constam no Programa de Obtenção de Navios-Patrulha (PRONAPA), que abrange, também, meios distritais de requisitos técnicos operacionais similares ou inferiores àqueles relativos aos navios-patrulha oceânicos. Todos esses navios, cuja construção está em curso ou programada, contam com elevada participação da Base Industrial de Defesa, contribuindo para geração de empregos e para o desenvolvimento tecnológico do País.
Mas quais os valores de cada nova embarcação e quanto seriam os investimentos necessários apenas para repor as que vão dar baixa?
O custo de construção de cada fragata da classe Tamandaré é da ordem de R$ 2,5 bilhões, enquanto cada submarino da classe Riachuelo custa cerca de R$ 3,5 bilhões. O navio-patrulha Mangaratiba tem o custo de cerca de R$ 200 milhões. Para a obtenção do navio hospital Anna Nery, a Marinha realizou a assinatura de dois Termos de Execução Descentralizada, com o Fundo Nacional de Saúde, no valor total de R$ 14,5 milhões.Para a construção do navio polar Almirante Saldanha foram capitalizados pela Emgepron aproximadamente R$ 740 milhões. Já o investimento aproximado para a construção de cada navio-patrulha de 500 toneladas será de R$ 250 milhões, enquanto o do navio polar será de R$ 700 milhões Os preços incluem sobressalentes até 24 meses de operação, transferência de tecnologia, dispositivos de treinamento e equipamentos especiais.
Quanto a Marinha investiu em compras e pesquisas em cada um dos últimos 5 anos e quanto seria necessário investir apenas para a manutenção de suas capacidades e cumprir com suas missões?
Quanto ao orçamento da Marinha, desde 2017, com a vigência do Novo Regime Fiscal, de conhecimento público por meio dos portais de transparência do Governo Federal, observa-se que, em média, houve investimentos estratégicos na ordem de R$ 1,79 bilhão por ano e despesas com a manutenção da Força na faixa de R$ 1,56 bilhão por ano. Sendo assim, conforme apresentado recentemente na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, considerando o regramento do antigo teto de gastos, ou seja, a correção dos limites orçamentários e o crescimento do IPCA desde 2017, ocorreu uma expressiva frustração orçamentária da ordem de R$ 3,3 bilhões nesse período.
A Marinha busca aplicar as melhores práticas de governança e gestão, as quais estruturam modelos de negócio sustentáveis, consistentes e edificados sob a necessária segurança jurídica, visando à eficiência na aplicação dos recursos públicos. Além disso, o fortalecimento da Base Industrial de Defesa, o arrasto tecnológico e a geração de empregos qualificados são outras preocupações da Força. Considerando a multiplicidade de tarefas sob sua a responsabilidade, constata-se que a Marinha experimenta um decréscimo de suas capacidades, motivado pelas restrições orçamentárias dos últimos anos que resultaram, inevitavelmente, em atrasos e na descontinuidade de projetos ligados à construção e modernização de meios, além do desenvolvimento de sistemas e tecnologias estratégicas. É nesse contexto que se reitera a importância de buscar a garantia da regularidade no orçamento da Defesa dentro da proposta de sustentabilidade financeira de 2% do PIB, para que o País venha a recuperar as suas capacidades de Defesa.
Qual seria o total de investimentos anuais necessários apenas para manter as atuais capacidades da Marinha?
No que tange o custo financeiro necessário à manutenção das capacidades dos meios navais de forma sustentável chega a R$ 685 milhões. É preciso compreender que a manutenção da capacidade da Marinha é necessária para que a Força Naval tenha condições de desenvolver um amplo e complexo conjunto de atividades, enquadradas em quatro campos de atuação do Poder Naval. O primeiro é a Defesa Naval. Ele engloba as ações e operações voltadas à defesa do País. Essas atividades são desencadeadas a fim de garantir a soberania nacional sobre os recursos naturais existentes nessa imensa área marítima, assim como para proteger contra ameaças externas às infraestruturas críticas de petróleo e gás, portos e instalações portuárias e os cabos submarinos que servem o Brasil.
Em seguida, vem a Segurança Marítima: ela atende tanto aos aspectos relacionados à segurança da navegação e do tráfego aquaviário quanto à concentração de esforços no patrulhamento das águas jurisdicionais brasileiras, contribuindo com a fiscalização e repressão à pesca ilegal, aos crimes ambientais e a outros ilícitos cometidos nesses ambientes. Em terceiro lugar, está a diplomacia naval: ela aborda o papel da Marinha no apoio à política externa, concretizado pela participação dos meios da Força Naval no exterior, inclusive em missões de paz sob a égide de organismos internacionais; e, por fim, há o apoio às ações do Estado, que objetivam o emprego do poder naval para o atendimento a situações excepcionais do País e a realização de atividades subsidiárias executadas pela Força, em coordenação com outros órgãos federais, estaduais ou municipais.
Também incluímos aqui o apoio às pesquisas no ambiente marinho e na Antártica e o atendimento à população em caso de desastres naturais, a exemplo da Operação Abrigo pelo Mar, realizada no início deste ano em razão das chuvas que atingiram o litoral norte de São Paulo. Os investimentos necessários a esse amplo conjunto de capacidades inclui identificar os meios disponíveis e suas rotinas de manutenção, os respectivos ciclos de vida e um plano de reaparelhamento viável. É preciso observar os investimentos sob uma perspectiva ampla e de longo prazo, em plena consonância com a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa, aprovadas pelo Senado em 2022, as quais orientam a busca por um patamar compatível com o PIB para o orçamento de Defesa.
Quais seriam os impactos da inclusão das empresas públicas não dependentes e dos fundos da Marinha no arcabouço fiscal e das novas regras fiscais para os investimentos de modernização da Força Naval nos próximos anos?
Em que pese o texto substitutivo do novo arcabouço fiscal não mais caracterizar como excepcionais as despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes, é importante entender que não há proibição para tal iniciativa de investimento por parte do governo federal. Em outras palavras, é possível prever na agenda governamental o fomento a um setor da economia, como o da indústria da construção naval. Esse campo específico tem grande potencial para agregar valor ao PIB, em especial pela capacidade instalada de estaleiros, assim como pela expressiva demanda por mão de obra, direta e indireta. A Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais), que é uma empresa não dependente, pública vinculada ao Ministério da Defesa por intermédio do Comando da Marinha, foi capitalizada, a partir de 2017, exatamente para possibilitar investimentos voltados à construção naval de novos meios para a Força. A iniciativa cumpre todos os regramentos fiscais e tem como propósito viabilizar programas estratégicos, como o programa das fragatas classe Tamandaré e do Navio Polar, além de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do País ao gerar empregos. O programa das fragatas, aliás, é uma boa referência de fomento e sustentabilidade de investimentos de médio prazo. Nesse contexto, e diante da realidade de restrições orçamentárias, algumas possibilidades para promover investimentos em construção naval estão sendo analisadas, a exemplo do Fundo Naval, dos royalties do petróleo e do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo. Entretanto, a continuidade dessas iniciativas depende da criação de outras soluções a serem discutidas, visto que, pelo novo arcabouço fiscal, não há previsão de ‘excepcionalização’ desses fundos.
Como a Marinha pensa em convencer o País da necessidade de se ampliar os gastos com defesa e atrelá-los a uma parcela do PIB?
Não se trata simplesmente de convencer a sociedade, mas sim de demonstrar a necessidade premente de o Brasil contar com um Poder Naval crível, pronto para atender aos compromissos internacionais e enfrentar os desafios relativos à garantia da soberania de seu território, aí incluídas suas águas jurisdicionais e os recursos nelas contidos. Desafios esses cujas dimensões são proporcionais à estatura político-estratégica do País e à extensão da Amazônia Azul, ou seja, 5,7 milhões de km² de área marítima e mais de 56 mil km de vias navegáveis interiores. Compreensivelmente, uma visão imediatista pode encobrir ou atenuar a percepção de ameaças e seus riscos associados. Nesse sentido, o entendimento de boa parte da sociedade de que o Brasil não tem ameaças não nos beneficia em nada, pelo contrário, suscita vulnerabilidades. Naturalmente, a segurança marítima e o apoio às ações do Estado têm uma maior visibilidade, por estarem atreladas ao emprego corrente da Força Naval. Entretanto, ameaças latentes ou potenciais, que são acompanhadas, podem ensejar riscos elevados e essas possibilidades não podem ser negligenciadas. Uma percepção menos acurada dessas ameaças influencia a alocação de recursos em Defesa, reduzindo essa prioridade. Essa realidade é perigosa e traz consequências graves. A presença de potências extrarregionais no entorno estratégico brasileiro deve ser motivo de preocupação para o Estado. A existência de cooperações e parcerias entre tais potências e países de nosso entorno geram a necessidade de constante avaliação do cenário geopolítico, incluindo, nessa análise, a própria capacidade de dissuasão da Força.
É preciso, ainda, levar em conta que movimentos geopolíticos em curso têm incentivado grandes e médias potências a elevarem seus investimentos em Defesa para renovar seus instrumentos militares. Com relação ao PIB, o Brasil provisionou, em 2023, o correspondente a 1,1% para a Defesa, enquanto países de características econômicas semelhantes seguem avançando, como a Índia, com 2,4%, a Colômbia com 3% e o Chile com 1,8%. A própria recomendação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) estabelece 2% do PIB como um patamar mínimo, em função do contexto internacional atual. Estudar possibilidades para elevar gradualmente o orçamento da Defesa é, portanto, imperativo para que as Forças Armadas atinjam a capacidade operacional plena. A Marinha desenvolve inúmeras ações para promover a mentalidade marítima, constituindo um programa estratégico que visa a conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância do mar como fator de sobrevivência e prosperidade para o Brasil. Esse programa prevê ações de comunicação estratégica que fomentam a consciência coletiva nacional em relação ao mar, direcionado a toda sociedade brasileira, e procura sensibilizar a classe governante sobre a relevância de se manter o mar brasileiro como espaço protegido, usado de modo sustentável e a favor dos interesses do País.
Dois por cento seria o ideal desejado pelas Forças. Mas ao mesmo tempo, elas são criticadas em razão de gastos com pessoal (28,7% do total com ativos e 49% com inativos) acima da média das forças de países da OTAN. Mesmo que o orçamento da Defesa chegasse a 2% do PIB, esses gastos ainda seriam de 47% do total, superiores à média da OTAN (44,5%) Como dar mais racionalidade a esses gastos para diminuir o seu peso orçamentário sem perder a capacidade de prontidão da Força?
Comparações com a conjuntura de outros países, principalmente, em termos orçamentários, requerem cuidado para terem validade. Ressalta-se que, desde 2017, a Marinha adota uma política gradual de redução do seu efetivo, bem como um processo de substituição de militares de carreira por temporários. A partir de 2019, a reestruturação da carreira dos militares das Forças Armadas foi definida (Lei nº 13.954). Destaco que, sob o viés dos princípios da boa gestão, a Marinha destina 70% do pessoal e da estrutura organizacional da Força para a atividade fim. Os outros 30% são empregados em atividades administrativas e de apoio, pessoal, material, ciência, tecnologia e inovação.
Os países membros da OTAN, citados na pergunta, buscam manter seus gastos com Defesa próximos a 2% do PIB, destinando uma maior parcela para suportar o elevado custo de manutenção de seus equipamentos, meios e apoio logístico. Entretanto, caso o orçamento brasileiro de Defesa atinja o patamar de 2% do PIB, como proposto, o valor para custear o pessoal, em termos absolutos, seria praticamente o mesmo que se verifica atualmente. Mas, em termos porcentuais, estaríamos em situação similar aos Estados citados na pergunta. Adicionalmente, com o incremento anual, investimentos de elevada complexidade tecnológica seriam desenvolvidos em maior escala, com impactos positivos por meio da incorporação de processos de automação e da racionalização de gastos, com redução de pessoal, e, consequentemente com o reequilíbrio do orçamento, sem perda da capacidade de prontidão operativa da Força. Isso geraria fôlego orçamentário que permitiria melhor balanço entre gastos de custeio e de investimentos para modernizar a Força Naval. Essa modernização é necessária para criar condições para enfrentar os crescentes desafios e cumprir, adequadamente, as tarefas inerentes à Defesa do País.
Como se daria o aumento do total de militares temporários? A saída seria ainda a criação de carreiras civis no Ministério da Defesa?
A Marinha empreende, permanentemente, esforços para aprimorar a gestão de recursos humanos, a fim de aumentar sua eficiência e desonerar os custos para o Estado. Desde 2017 adotamos ações para redimensionar a força de trabalho da Marinha, por meio da redução do pessoal de carreira, que somente é possível com aumento do recrutamento de pessoal temporário. Esperamos que essa medida produza uma economia de gastos com pessoal, principalmente, a médio e longo prazo.
Outra linha de ação para reduzir o porcentual do orçamento destinado ao pagamento de pessoal militar consiste na realização de concursos públicos para admissão de civis, de modo a recompletar os cargos previstos para esses servidores, que atualmente estão vagos. Embora a legislação autorize a lotação de 8.837 cargos para servidores civis, apenas 2.757 estão ocupados, sendo que 1.402 destes servidores já preenchem os requisitos para se aposentar. Os servidores civis da Marinha constituem parcela importante da nossa força de trabalho, atuando em diversas áreas de grande relevância, como na construção, manutenção e reparo de meios navais; na pesquisa, desenvolvimento e inovação relacionadas às ciências do mar; nas atividades de ensino superior e médio; no atendimento médico-hospitalar e odontológico; e na gestão de pessoas. Para preencher essas vagas, é necessária a realização de concursos, que têm sido insuficientes nas últimas décadas. O último autorizado ocorreu em 2017, para o preenchimento de 21 vagas. Dessa forma, um esforço coordenado com os demais ministérios envolvidos para o gradual preenchimento dos mais de 6 mil cargos vagos – cerca de 70% da lotação – possibilitaria a correspondente redução dos efetivos militares atualmente empregados para suprir essa deficiência. Por fim, em relação à criação de carreiras civis no Ministério da Defesa, os estudos estão sendo conduzidos no âmbito do ministério, que teria melhores condições de avaliar os possíveis impactos financeiros da medida.
Reduzir atribuições subsidiárias seria outra saída? Quais delas poderiam ser reduzidas?
Conforme a lei (Lei Complementar n.° 97), cabe à Marinha cumprir atribuições subsidiárias essenciais para a manutenção da segurança da navegação bem como da salvaguarda da vida humana no mar, tanto as gerais das Forças Armadas como as particulares. Não se trata, portanto, de uma opção ou exercício de vontade, e sim de uma destinação legal para a qual a Força Naval empenha esforços. A considerável dimensão das áreas marítimas, fluviais e lacustres brasileiras e a especificidade dessas atividades demandam estrutura, capilaridade, organização e capacitação técnica, elementos que a Marinha detém e que dificilmente seriam obtidos por outra instituição. Convém enfatizar que as atividades desenvolvidas no âmbito das atribuições subsidiárias atendem às necessidades do Estado brasileiro e seus resultados contribuem para a segurança e bem-estar da sociedade. Essas ações agregam, também, condições para o desenvolvimento do País, contribuindo para a segurança e estabilidade, além de garantir, em determinadas localidades, especialmente aquelas mais afastadas dos centros urbanos, a presença do Estado. No que se refere à segurança da navegação, há seu impacto no custo do frete marítimo, principal modal empregado para exportação e importação de produtos.
A Marinha tem a atribuição de propor diretrizes para a Política Marítima Nacional. O cenário atual indica um crescimento da atividade marítima, da indústria naval, além de intensificação nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico voltados à melhoria da eficiência energética dos navios, à produção e uso de combustíveis alternativos de baixa ou zero emissão para o transporte marítimo e o aumento da sustentabilidade e eficiência operacional dos portos. É importante destacar o elevado potencial do Brasil para produzir biocombustíveis e gerar energia sustentável, principalmente, em virtude das áreas disponíveis para a instalação de parques solares fotovoltaicos e eólicos na costa brasileira. Existem também estudos que assinalam a possibilidade de implantar instalações eólicas offshore, que deverão impulsionar o desenvolvimento de toda uma cadeia produtiva da indústria marítima atrelada a essa atividade.
Outro aspecto a ser considerado é o crescimento do transporte de cabotagem, que atesta o entendimento do mar como fonte de renda e empregos, garantia de segurança alimentar e oportunidades de contribuir para a redução do ‘custo Brasil’, aspectos que dependem da atuação da Marinha. Acerca da capacitação de pessoal para o setor aquaviário, o Brasil possui cerca de 195 mil profissionais nessa área, divididos entre marítimos, fluviários, pescadores, mergulhadores, práticos e agentes de manobra. Por ano, 15 mil brasileiros em todos os estados da Federação recebem capacitação da Marinha para ingressar nesse mercado de trabalho. Diante disso, é pertinente afirmar que propostas de alteração no dimensionamento e abrangência das atividades subsidiárias da Marinha devem ser analisadas e avaliadas à luz dos possíveis impactos que podem afetar a segurança e garantia do funcionamento do Estado, de modo que alterações apontadas não deflagrem outros problemas ou acarretem lacunas de responsabilidade e atuação indesejáveis.
De R$ 79 milhões necessários para recompor sua munição, a Marinha só recebeu R$ 6,8 milhões em 2023. Também só pôde contar com 57% do combustível mínimo para as embarcações. Com a redução de alocação de recursos para combustível e munição, como fica a capacidade de dissuasão da Marinha?
A baixa disponibilidade de combustíveis e munição para os meios operativos da Marinha traz impactos em todos os seus campos de atuação. No que se refere à prontidão para o emprego na Defesa Naval – contribuição do Poder Marítimo à defesa da Pátria –, mesmo que uma eventual situação externa demande a atuação imediata dos meios da Marinha, e que sejam disponibilizados em caráter de urgência recursos para a Força, existe um tempo de resposta que depende, em grande parte, do esforço logístico para se obter a quantidade necessária de combustível e munição, caso esses itens não estejam prontamente disponíveis.
Em relação à segurança marítima, o emprego rotineiro dos meios nessas atividades também, obviamente, requer disponibilidade de combustível e munição. Portanto, a restrição desses elementos diminui a presença e a atuação da Marinha nas águas jurisdicionais brasileiras, afetando a quantidade e a qualidade de atividades relacionadas à fiscalização do cumprimento da correspondente legislação no ambiente marítimo e nas vias navegáveis interiores, bem como na proteção dos recursos naturais e infraestruturas críticas, como portos, terminais portuários, plataformas de exploração de petróleo e gás e cabos submarinos, existentes nesses espaços.
A Marinha apoia a política externa do País, realizando visitas a portos estrangeiros e participando de operações multinacionais, como os exercícios navais que são conduzidos anualmente no Golfo da Guiné, em apoio às marinhas dos Estados da África Ocidental para contribuir para a segurança marítima na região. Essas atividades também demandam disponibilidade de combustível para serem executadas. O não atendimento desses eventos reduz a projeção do Brasil no cenário internacional e inibe oportunidades para o País ampliar suas relações com outros atores.
Na ampla gama de atividades em apoio às ações do Estado, meios navais, aeronavais e de fuzileiros navais são utilizados para atender demandas que, por vezes, ocorrem inadvertidamente, como desastres ambientais e calamidades públicas. Em muitos casos, por serem eventos inopinados, esse tipo de atuação exige das unidades operativas um constante estado de prontidão, bem como quantidades adequadas de combustível e munição permanentemente disponíveis. Cabe considerar, ainda, a participação desses meios tanto em atividades promovidas pela Marinha, como é o caso da assistência hospitalar na Bacia Amazônica e no Pantanal, quanto em operações interagências, principalmente, quando conduzidas em ambientes marítimos, próximo ao litoral, e ribeirinhos.
Além disso, para serem empregados com segurança e eficácia, os meios operativos necessitam realizar treinamentos contínuos, que são essenciais para manter as unidades da Marinha em condições de executar suas tarefas. Atividades que envolvem risco operacional mais elevado, a exemplo das operações com aeronaves, submarinos e mergulho, entre outros, requerem a realização de treinamento periódicos e rotineiro. Em suma, não é possível reduzir o consumo de combustível e de munição restringindo atividades relacionadas ao adestramento.
Uma Força sem mobilidade por restrição de combustível e com baixo poder de combate pela escassez de munição não cumpre eficazmente sua missão. Consequentemente, sua capacidade de dissuasão fica comprometida. E uma Força que não tem capacidade de dissuasão peca em sua razão e essência de ser. Para mitigar esse risco, a Marinha tem envidado esforços para assegurar os investimentos mínimos requeridos para aquisição de quantidades suficientes de combustíveis e de munição para a manutenção da condição de pronto emprego.
Parcerias com outros países para o desenvolvimento de tecnologias e armamentos podem ser uma saída? É nesse contexto que se insere o acordo assinado com o grupo Edge, dos Emirados Árabes Unidos? Seria a forma de se garantir que o míssil Mansup, por exemplo, deixará a fase de ‘produtação’ para passar à produção mais rapidamente?
Parcerias na área de Defesa permitem a obtenção de know-how tecnológico e conhecimentos específicos, cujo desenvolvimento demandaria tempo considerável e vultosos investimentos. Além disso, as tecnologias inovadoras e as estratégico-militares comportam um importante desafio em seu processo de maturação: a passagem de um conceito válido e testado no ambiente operacional, que marca o final da fase de desenvolvimento para o início do ciclo de produção, com a necessidade de investimento nos processos de engenharia do ciclo de vida, visando à sustentação da tecnologia e sua inserção no mercado.
A Marinha procura estabelecer parcerias de acordo com critérios e condições bem definidos, de modo que os resultados estejam alinhados com os interesses nacionais, inclusive nos aspectos relacionados ao desenvolvimento industrial e de Ciência, Tecnologia e Inovação na área de Defesa. As parcerias celebradas pela Marinha representam, também, oportunidades que contribuem com o fortalecimento do relacionamento comercial e estratégico do Brasil com outros países.
O programa estratégico Esporão, particularmente, contempla um conjunto de projetos de desenvolvimento e aquisição, em nível nacional, de armamento do tipo míssil, de modo a diminuir a dependência estrangeira em tecnologias negadas nessa área. O programa favorece a modernização do parque industrial do País, o incremento da Base Industrial de Defesa e o aprimoramento da capacitação técnica dos profissionais envolvidos.. No âmbito do programa Esporão, o projeto Míssil Antinavio Nacional de Superfície, o Mansup, de responsabilidade da Diretoria Geral do Material de Marinha, tem o objetivo de desenvolver e produzir mísseis antinavio, de alto desempenho e tecnologia 100% nacional, para compor os sistemas de defesa dos navios da Esquadra brasileira, contribuindo para a segurança da Amazônia Azul.
A Marinha firmou um acordo com a empresa Edge Group para verificar possíveis modelos de negócios sustentáveis para o desenvolvimento de uma família de mísseis antinavio, aplicados em submarinos, aeronaves, navios de superfície e tropas terrestres, viáveis de serem produzidos em escala e comercialização. Nesse sentido, o acordo assinado visa, também, à exportação de produtos brasileiros de alta complexidade no mercado global por meio de cooperação estratégica. A parceria com outros países e agências de aquisição de produtos militares beneficia um projeto tecnológico na medida em que amplia o mercado potencial da tecnologia e traz novos requisitos a serem atendidos pelo produto, o que expande seu mercado potencial. Os recursos necessários para levar um projeto ao ciclo de produto são consideráveis. Com isso, a entrada de novos parceiros em um projeto já em nível elevado de maturidade, pode garantir que não faltem recursos para o ciclo de produto desse projeto.
Como os atos do 8 de janeiro e as duas CPIs em Brasília influenciaram o debate sobre os temas da Defesa?
Essa questão está sendo tratada em foro adequado, não cabendo à Marinha emitir opiniões a respeito. Ademais, a Marinha do Brasil reitera o seu firme compromisso com os preceitos legais que garantem o Estado Democrático de Direito. Sem entrar no mérito de sua pergunta, é importante transmitir o entendimento da Marinha quanto à relevância de se promover uma mentalidade de Defesa, assegurando maior espaço de discussão na agenda nacional.
Mas, diante de algumas manifestações no Congresso durante a exposição do senhor e dos demais comandantes na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, o senhor mesmo assim acredita que as relações civis-militares vão se normalizar rapidamente?
As Forças Armadas, como instituições regulares e permanentes do Estado brasileiro, mantêm relações contínuas e necessárias com as demais instâncias e esferas dos poderes da União. Quando você menciona as relações civis-militares, no entendimento da Marinha, elas são calcadas em relações institucionais. A comunicação e o relacionamento que a Marinha cultiva com agentes públicos e com parlamentares que representam a sociedade são pautados no debate profissional e transparente sobre questões inerentes à Defesa, especialmente, aquelas que envolvem a garantia da soberania e a defesa dos interesses do Estado brasileiro.