Enquanto crise de Nagorno-Karabakh se acentua, Erdogan cobra ligação azeri com exclave
Igor Gielow | Folha de S.Paulo
São Paulo - Uma semana após ter tomado o controle do enclave armênio étnico de Nagorno-Karabakh, encerrando 32 anos de disputas que levaram a duas guerras, o Azerbaijão sinalizou nesta segunda-feira (25) seu próximo objetivo territorial.
Aliyev (esq.) e Erdogan revistam tropas em Nakchivan, capital homônima do exclave azeri - Murat Cetinmuhurdar/PPO/Reuters |
De forma nada sutil, o presidente Ilham Aliyev lamentou que a dissolução da União Soviética em 1991 tenha encerrado o corredor terrestre entre seu país e o exclave de Nakhchivan, que fica entre a Armênia, a Turquia e o Irã.
A fala do autocrata, que comanda o governo em Baku com mão de ferro desde 2003, ocorreu justamente nesta região e ao lado do seu principal fiador político, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Ambos voaram para Nakhchivan para inaugurar a obra de um gasoduto entre o exclave e a Turquia, mas o sinal era outro.
"Nós esperamos um acordo de paz amplo entre os dois países [Azerbaijão e Armênia] o mais rapidamente possível e que promessas sejam implementadas, em especial a abertura do corredor de Zangezur [entre Nakhchivan e território azeri]", afirmou Erdogan, sem meias palavras e interpretando livremente conversas anteriores — em 2021, Aliyev ameaçou implementar a ligação à força.
"O novo alvo do Azerbaijão e da Turquia é Syunik", afirmou o influente canal de Telegram República de Artsakh, nome armênio de Nagorno-Karabakh, em referência à província do sul da Armênia por onde tal corredor terrestre poderia ser estabelecido.
Nakhchivan tem 95 mil habitantes, separados dos 10 milhões de compatriotas azeris. A Armênia, pouco menos de 3 milhões de habitantes, enquanto o enclave de Nagorno-Karabakh abrigava até a ação da semana passada 120 mil pessoas.
Tudo aquilo era União Soviética e Império Russo por séculos, mas a dissolução comunista deixou bolsões de populações separadas. A diferença entre Nakhchivan e Nagorno-Karabakh, contudo, é que o primeiro é um pedaço oficial do Azerbaijão, enquanto o segundo era uma autoproclamada república autônoma.
A ambição de Aliyev seria impensável há alguns meses, dado o papel considerado de protetor que a Rússia exercia sobre a Armênia. A guerra de 2020, na qual Baku contou com apoio militar turco para reconquistar todo o entorno de Nagorno-Karabakh perdido no conflito de 1992-94, foi encerrada com o envio de uma força de paz de Vladimir Putin para a região.
Dois fatores, contudo, concorreram para a mudança no cenário. Um, o enfraquecimento relativo de Moscou naquilo que já foi considerado seu quintal ao sul, dado o foco na Guerra da Ucrânia. Outro, o fato de que o governo do premiê Nikol Pashinyan em Ierevan é visto como hostil ao Kremlin.
A Armênia é dependente do ponto de vista econômico da Rússia, e isso só aumentou após a guerra: o fluxo comercial entre os países dobrou para US$ 5 bilhões em 2022, em grande parte pelo uso da nação do Cáucaso como entreposto para Moscou driblar sanções ocidentais.
Mas Pashinyan, que já ensaiou um divórcio com os russos antes, passou os últimos meses denunciando o que seria o abandono total do compromisso de Putin com a paz de 2020 — em nome de sua boa relação com Erdogan, que é um poderoso membro da aliança militar ocidental, a Otan.
Com isso, o armênio tentou aproximar-se dos Estados Unidos — com quem realizava manobras militares enquanto Nagorno-Karabakh era tomada em 24 horas de ataques de Baku — e da União Europeia. Nesta segunda, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia afirmou que Pashinyan está "cometendo um grave erro" ao buscar culpar Moscou por seus problemas.
O premiê enfrenta protestos, que ele diz serem fomentados pelos russos. Pode ser, mas o fato é que politicamente Pashinyan está isolado, até porque a liderança de Nagorno-Karabakh o acusa igualmente de ter abandonado os moradores do enclave.
O êxodo deles começou a ganhar tração nesta segunda. Até o fim do dia, já havia 6.650 refugiados cruzando o chamado corredor de Lachin, uma estrada que liga Nagorno-Karabakh à Armênia. Pashinyan diz que receberá até toda a população do enclave, se isso for necessário, mas a crise humanitária em formação é evidente.
Putin disse a Aliyev na semana passada que garantir a segurança desses refugiados é prioridade, e por ora as tropas russas estão patrulhando o corredor de Lachin. Não se sabe como ficará a situação depois. Nesta segunda, uma explosão em um posto de gasolina na capital regional de Stepanakert, em circunstâncias não explicadas, deixou 200 feridos.
A pressão azeri por uma ligação com Nackchivan enfrentará, de todo modo, algumas questões práticas. Moscou tem um pacto de defesa com Ierevan, mantendo cerca de 3.000 soldados na maior base que opera fora de seu território. Se houver uma ação armada contra a soberania armênia, no papel os russos são obrigados a defender o aliado.
Como a última coisa que Putin precisa é um conflito em outra fronteira tensa, é improvável que qualquer acomodação envolva disparos, restando saber se Moscou está pronta para aceitar uma negociação que rife territórios sob sua proteção presumida.
De seu lado, Erdogan posa de vitorioso. Ele já havia defendido a ação azeri na Assembleia-Geral da ONU, na semana passada. Nesta segunda, admoestou Ierevan: "A Armênia não está tirando o melhor dessa chance histórica".
Para os armênios, a humilhação ressoa de forma intensa. O país não tem relações com a Turquia devido ao genocídio de 1,5 milhão de pessoas em 1915, operado por tropas do então Império Otomano. Ancara não reconhece a acusação.