Governo ameaça deportar naturais de terceiros países, alegando abusos, apesar da Diretiva de Proteção Temporária da UE.
Teri Schultz | Deutsch Welle
Ao chegar à Ucrânia em 2019, Mariam Adeshoga vislumbrou um futuro profissional que não considerava possível para uma mulher em seu país natal, a Nigéria. De posse de um visto de estudante para cursar o mestrado, a programadora de software de 30 anos sentiu-se imediatamente em casa.
Protesto em Haia pela permanência de refugiados da Ucrânia vindos de terceiros países | Foto: Derdelanders.org |
"Quando cheguei lá [em Kiev], fiquei fascinada com as pessoas, e o ambiente era calmo e adorável", recorda, com um sorriso. "Então para mim foi, tipo: 'OK, eu posso simplesmente começar minha vida toda e continuar com o meu futuro aqui."
Adeshoga morava com estudantes ucranianos, estudou o idioma e a cultura, e trabalhava pelo sonho de inspirar outras jovens como ela a entrarem para o setor de programação. Em suas fotos pessoais, ela aparece sorridente, com os amigos, fazendo gracinhas para a câmera, na praia, num café, nas ruas de Kiev. "Eu nunca pensei em deixar a Ucrânia, eu me sentia tão segura lá."
Mas aí, em 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia iniciou sua guerra contra o país vizinho, "tudo desapareceu". Como seus companheiros ucranianos, Adeshoga teve que correr para os abrigos antiaéreos. Após alguns dias de medo paralisante, ela atravessou a fronteira para a Polônia, à procura de segurança.
De lá, foi para a Holanda, terminando por ficar alojada num hotel flutuante em Amsterdã, numa cabine mínima projetada para acomodação de curto prazo. Sua chegada, em 2 de março de 2022, coincidiu com o dia em que a União Europeia ativou pela primeira vez sua Diretiva de Proteção Temporária (DPT) de 2001, visando assistir rapidamente os que escapavam da Ucrânia, sem submetê-los ao processo de solicitação de asilo.
O governo holandês optou pela aplicação mais liberal da diretriz, acolhendo todos os refugiados do país sob invasão russa, independente de nacionalidade. Assim como os demais originários de terceiros países, Adeshoga recebeu o mesmo pacote de assistência que os cidadãos ou residentes permanentes da Ucrânia, incluindo alojamento, cuidados médicos, uma mesada e acesso à educação. Até agora.
Ameaça de deportação em massa
Numa decisão que deveria entrar em vigor em 4 de março, mas foi prorrogada por seis meses, o governo decretou que os cerca de 3 mil refugiados sem direito a permanência na Ucrânia devem deixar a Holanda até esta segunda-feira (04/09). Segundo o Departamento de Imigração e Naturalização, a diretiva DPT da UE estaria sendo objeto de "abuso".
"É extremamente importante proporcionarmos proteção a quem não está seguro em seu país", declarou o ministro da Migração Eric van der Burg. "Ao mesmo tempo, não queremos sobrecarregar as municipalidades." O Ministério da Justiça, a que a pasta está subordinada, declinou diversos pedidos da DW por uma entrevista com Van der Burg sobre a decisão.
Um dos afetados pela ordem compartilhou a carta enviada pelo prefeito de Haarlem, exigindo que desocupasse a acomodação subvencionada até a meia-noite de 4 de setembro.
"Se o senhor não deixar o alojamento no prazo, a municipalidade poderá tomar medidas para forçar sua partida [...] e responsabilizá-lo pelos custos decorrentes. Se não é legalmente residente na Holanda, o senhor deve sair do país e não terá mais permissão de trabalhar aqui."
O governo holandês ofereceu 5 mil euros para os cidadãos de terceiros países irem voluntariamente, sendo a única alternativa requerer asilo num sistema que já está nos seus limites. Nesse caso, teriam que provar que suas vidas estão em perigo se voltarem a seus países – um ônus que a DPT foi explicitamente criada para evitar.
"Receita para o caos"
Para a advogada especializada em imigração Lotte van Diepen, da firma Everaerts, de Amsterdã, não se trata de "um jeito proporcional" de lidar com a situação: "Eu poderia dizer que é uma receita para o caos."
Van Diepen representa alguns refugiados, entre os quais Mariam Adeshoga, em processos pelo direito de permanência. Em sua opinião, quem foi inicialmente contemplado pela Diretiva de Proteção Temporária continua tendo o direito legal de permanecer, se não infringiu nenhuma lei holandesa, nem outras estipulações do mecanismo.
Um dos argumentos da advogada é que caberia ao Conselho Europeu eventualmente suspender os direitos previstos pela DPT, já que quem ativou a diretriz foi esse grêmio, constituído pelos chefes de Estado e governo da União Europeia.
"Não é da autoridade do ministro decidir quando [a DPT] termina. Há provisões na diretiva estipulando em que cenários a proteção temporária pode ser suspensa, e esses cenários não se aplicam, pelo menos não nos meus casos."
"Meus clientes estão trabalhando ou estudando", reforça Van Diepen. "Eles começaram a construir uma vida aqui, partindo do princípio que teriam permissão de permanecer enquanto a Diretiva de Proteção Temporária se aplicasse."
Humanidade versus burocracia
Alguns dos afetados formaram o grupo Derdelanders ("cidadãos de terceiros países", em holandês), que organiza manifestações e iniciou uma petição online apelando ao governo para reavaliar a decisão.
"Nosso status prévio na Ucrânia, quer trabalho ou estudo, não deve minimizar as adversidades que encontramos devido à guerra, nem se sobrepor à magnitude dos nossos sofrimentos", consta da carta aberta que acompanha a petição. "Os critérios de proteção devem ser fundamentados na humanidade, e não nas tecnicidades da burocracia, passaporte ou histórico."
Atualmente há tribunais holandeses considerando se o governo tinha o direito de tomar a medida. Por sua vez, Mariam Adeshoga foi informada na sexta-feira de que poderá ficar no país e trabalhar – pelo menos provisoriamente, enquanto espera o resultado dos recursos.
Independente do caminho que tome o seu destino, ela tenta, acima de tudo, concentrar-se em seu sonho; que um dia poderá desfazer as malas definitivamente, inspirando outras mulheres a se tornarem programadoras, qualquer que seja o país que acabe sendo o seu lar.