Em depoimentos, ex-ajudante de ordens confirma que organizou a venda de dois relógios do acervo público nos EUA e repassou o valor ao ex-presidente
Por Marcela Mattos | Veja
Há muito Brasília não vivia um clima de suspense parecido com o que se viu nos últimos dias — mais precisamente desde sábado 9, quando o tenente-coronel Mauro Cid foi libertado após assinar um acordo de colaboração premiada. Ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, ele foi braço direito do ex-presidente durante os quatro anos de mandato. Nada — ou quase nada — acontecia no terceiro andar do Palácio do Planalto sem o conhecimento do militar, que acompanhava reuniões, viagens, atendia as ligações do presidente, agendava encontros e cuidava das contas pessoais da família. Com essa miríade de atribuições sensíveis, Cid viu, ouviu e compartilhou das mais íntimas situações. O coronel estava preso preventivamente havia quatro meses. Dias antes de ser solto, ele prestou depoimentos à Polícia Federal e confessou sua participação em dois casos investigados pelo Supremo Tribunal Federal — a falsificação de cartões de vacinação e a tentativa de vender joias, relógios, canetas e outros presentes recebidos por Bolsonaro durante o governo.
ELE SABIA - Mauro Cid ao sair da prisão: as revelações do ex-ajudante de ordens desmontam a versão de Jair Bolsonaro (Cristiano Mariz/Ag. O Globo/.) |
No primeiro caso, o dos cartões de vacina, Cid assumiu a responsabilidade por tentar fraudar os registros do Ministério da Saúde ao emitir documentos que atestavam que ele, a mulher e as filhas haviam recebido os imunizantes contra a Covid-19. Segundo o militar, o objetivo seria apenas o de ter em mãos uma espécie de salvo-conduto para ser usado caso a família fosse alvo de eventuais perseguições depois de terminado o governo. Cid temia que a esposa e as filhas pudessem sofrer algum tipo de retaliação futura por não terem se vacinado. “Eu estava com medo de perseguição, a gente não sabia o que ia acontecer. Estava com medo de a minha filha não poder ir para a escola, a minha esposa não poder entrar no mercado”, explicou, contrariando uma das linhas de investigação da polícia, que viu na iniciativa do coronel uma forma de driblar a fiscalização sanitária em viagens ao exterior depois de deixar o governo.
No segundo caso, o da venda de joias, a confissão do coronel embute revelações que comprometem e certamente vão agravar a situação jurídica de Jair Bolsonaro. Cid admitiu ter participado da venda de dois relógios de luxo recebidos pelo mandatário — um Patek Philippe e um Rolex. E, no ponto mais sensível do depoimento, confirmou ter repassado o dinheiro obtido no negócio ao ex-presidente. Foi a Polícia Federal quem descobriu a transação, realizada na surdina nos Estados Unidos, para onde Bolsonaro viajou no fim do ano passado acompanhado do ajudante de ordens e levando na bagagem dois kits de joias. Ao ser confrontado com a informação, o ex-presidente disse que desconhecia o negócio e não havia recebido nenhum dinheiro proveniente de venda dos presentes. O depoimento de Cid desmonta essa versão. “O presidente estava preocupado com a vida financeira. Ele já havia sido condenado a pagar várias multas”, contou. A ideia de vender as peças, portanto, surgiu de uma necessidade de levantar recursos para bancar suas despesas.
SUSPEITA - Manifestantes acampados em frente ao QG do Exército e minuta encontrada no celular do coronel: roteiro do que seria um golpe de Estado (Sergio Lima/AFP) |
Na última segunda-feira, já em liberdade e usando tornozeleira eletrônica, Cid visitou um colega. Os boatos sobre o conteúdo de sua colaboração, mantida em sigilo, ganhavam dimensão, especialmente em relação à venda das joias. Ele então explicou que, apesar de tudo, não houve intenção de nenhum deles em fazer nada errado. Antes de terminar o governo, o presidente pediu ao coronel que avaliasse alguns presentes — itens, segundo ele, classificados como “personalíssimos”, ou seja, faziam parte do acervo pessoal do presidente e, por essa razão, podiam ser comercializados. “A venda pode ter sido imoral? Pode. Mas a gente achava que não era ilegal”, contou o ex-ajudante de ordens. A polícia já havia rastreado praticamente tudo sobre a transação, mas ainda faltavam peças importantes para completar o quebra-cabeça. O relógio Patek Philippe, por exemplo, nem sequer chegou a ser registrado no setor responsável pelo recebimento de presentes — ou seja, oficialmente, o regalo nunca existiu para o Estado brasileiro. Para os investigadores, Bolsonaro criou uma estrutura para desviar bens públicos de alto valor para fins de enriquecimento ilícito. Faltava, porém, uma informação fundamental para fechar a investigação: a prova de que o ex-presidente recebeu o dinheiro proveniente do negócio. Cid elucidou o caso. Segundo ele, o dinheiro da venda dos relógios foi depositado na conta do pai dele, o general Mauro Lourena Cid, sacado em espécie e repassado em mãos a Bolsonaro — “Em mãos. Para ele”. A entrega dos valores— 68 000 dólares, segundo os federais — se deu de maneira parcelada, parte do pagamento ainda em solo americano.
Apesar da colaboração, Cid tem de cumprir algumas exigências impostas pelo ministro Alexandre de Moraes. Além da tornozeleira, é obrigado a permanecer em casa durante a noite e nos fins de semana e comparecer semanalmente à Justiça de Brasília. Ele não pode deixar o país ou se comunicar com os outros investigados nos processos, como o próprio presidente Bolsonaro ou seus advogados. Não há, porém, restrições para ele conversar com amigos e familiares. O coronel tem se dedicado a tentar retomar a rotina, visitar pessoas próximas e ficar com a esposa e a filha de 6 anos. Nessas conversas, ele faz questão de contar sua versão dos fatos, deixando claro que “cumpria ordens” e sempre ressaltando a admiração que ainda cultiva pelo antigo chefe.
Apesar da colaboração, Cid tem de cumprir algumas exigências impostas pelo ministro Alexandre de Moraes. Além da tornozeleira, é obrigado a permanecer em casa durante a noite e nos fins de semana e comparecer semanalmente à Justiça de Brasília. Ele não pode deixar o país ou se comunicar com os outros investigados nos processos, como o próprio presidente Bolsonaro ou seus advogados. Não há, porém, restrições para ele conversar com amigos e familiares. O coronel tem se dedicado a tentar retomar a rotina, visitar pessoas próximas e ficar com a esposa e a filha de 6 anos. Nessas conversas, ele faz questão de contar sua versão dos fatos, deixando claro que “cumpria ordens” e sempre ressaltando a admiração que ainda cultiva pelo antigo chefe.
O ex-ajudante de ordens também precisou dar explicações sobre um roteiro de teor golpista encontrado em seu celular que discorria sobre a anulação das eleições do ano passado, que se somaria a uma intervenção no Supremo Tribunal Federal (STF) e à convocação de um novo pleito. Cid afirmou que, pelas funções que exercia, seu telefone canalizava incontáveis mensagens sobre diversos assuntos, e mais de uma pessoa lhe encaminhou planos mirabolantes com conotação golpista — mas garante que não passou de um choro livre e que não deu prosseguimento ao material. “Eu recebia um monte de besteira nesse sentido, de gente que defendia intervenção, mas não repassava para o presidente. Qual o valor daquele texto encontrado no meu celular?”, disse.
A blindagem é estendida à trinca de generais que compuseram o alto escalão do governo Bolsonaro. Tidos pela PF como incitadores de um movimento golpista, os ex-ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) foram poupados por Cid em suas tratativas. Por essa versão, não há nada que macule os ex-auxiliares. “Nunca vi o general Braga Netto levando nada ao presidente, nenhuma proposta. O general Ramos desapareceu naquele período. O general Heleno estava mais preocupado com a saúde do presidente do que com os manifestantes”, afirmou ele. Nos últimos dias, o pai do ex-ajudante de ordens se empenhou pessoalmente em disparar telefonemas para negar as notícias divulgadas de que o filho teria incluído os generais no seu cardápio de colaboração.
O avanço das investigações sobre Cid chacoalha o meio militar desde o início do ano. Em janeiro, o então comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, acabou demitido pelo presidente Lula após se negar a revogar a promoção do tenente-coronel ao comando de um batalhão em Goiânia e impor resistência a uma operação da PF contra Cid, que à época morava em uma área da vila militar em Brasília reservada para generais e seus assessores. Agora, a nova cúpula da Força, comandada pelo general Tomás Paiva, tenta virar a página. Por determinação de Moraes, Cid foi afastado de suas funções no Exército e não tem prazo para que a medida seja revista — entre o Alto-Comando, é tido como certo que ele será punido, podendo até ser expulso, ao fim das investigações.
Ciente de que seu futuro dentro das Forças Armadas pode estar com os dias contados, o ex-ajudante de ordens tenta preservar os seus subordinados e, principalmente, o prestígio do pai dentro do Exército. O general Cid, que chefiou o Comando Militar do Sudeste e chegou a atuar, como substituto, no comando da Força, é (até aqui) um militar respeitado e de trajetória exemplar durante os mais de quarenta anos de farda. Quando o filho foi preso, ele se mudou do Rio de Janeiro para Brasília. Desde então, travava uma batalha para contestar a legalidade da prisão, considerada como política, e para reforçar a tese de que Mauro Cid estava apenas cumprindo suas funções militares ao lado de Bolsonaro. Em busca de apoio jurídico, o general também narrou detalhes do drama do filho a pelo menos três advogados diferentes. Quem esteve por perto do ajudante de ordens na prisão e ouviu algumas de suas confidências conta que ele caiu em prantos quando o pai e seus subordinados foram envolvidos nas investigações. “A gente é leal ao superior, mas protege o subordinado”, desabafou logo depois de deixar a cadeia. Alguns entenderam essa declaração como um recado.