Ideia é criar Fundo para Defesa, que emprestaria recursos às empresas ligadas às Forças Armadas para facilitar exportações como a do míssil Mansup; proposta tem apoio do Exército e da Marinha
Por Marcelo Godoy | O Estado de S.Paulo
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva prepara uma nova forma de financiar a indústria bélica do País: um Fundo para o setor de Defesa gerido pelo BNDES. E quer financiar exportações da área, usando como garantias dos empréstimos os contratos que as empresas fecharem para a venda de armas. A medida ajudaria estatais, como a Emgepron e a Imbel, a obter recursos fora do orçamento federal, o que deixaria os gastos com a compra de insumos, por exemplo, fora dos limites do arcabouço fiscal.
O general Fernando José Sant'ana Soares e Silva, chefe do Estado-Maior do Exército, defendeu a criação do fundo para financiar a produção bélica do País Foto: CMO/EB |
À coluna, o Exército e a Marinha bem como empresas da Base Industrial da Defesa confirmaram o plano para o fundo. Ele deve envolver os Ministérios da Defesa, Indústria e Comércio e Fazenda. Já o diretor de Desenvolvimento Produtivo, Inovação e Comércio Exterior do BNDES, José Luis Gordon, confirmou por meio de sua assessoria, o plano de incluir a indústria bélica no plano de financiamento de exportações (eximbank), conforme defendido por seu presidente, Aloísio Mercadante, já em sua posse.
O novo fundo seria ainda uma forma de resolver o desejo da Defesa de obter parcela maior do orçamento. Em 2022, receberam o equivalente a 1,05% do PIB. Mas pretendem alcançar 2%. No sábado, dia 16, em artigo publicado pelo Estadão, o general Fernando José Sant’Ana Soares e Silva, chefe do Estado-Maior do Exército, tratou dos desafios do mundo multipolar. Defendeu para o Brasil a neutralidade em relação aos blocos de poder. E afirmou: “Para alcançar essa neutralidade, o País precisa, antes, ter condições de mantê-la. Caso contrário, seria uma neutralidade enviesada, que coincidiria com os interesses de outras potências.”
É notável aqui como Soares se aproxima da política defendida pelo Itamaraty. Depois de tantos conflitos entre os Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, como no caso da venda de blindados Guarani para a Ucrânia e de armas para o Peru, o financiamento da indústria de Defesa parece unir militares e parte dos próceres do governo Lula. Uma parte da base petista, porém, vai torcer o nariz para o governo. Não são poucos os que acusam as Forças de “voracidade” por recursos, enquanto outras áreas vivem à míngua.
Ou ainda, que as Forças Armadas deveriam primeiro modernizar suas estruturas, inclusive comprometendo menos recursos com pessoal, antes de ampliar o orçamento. A ideia do fundo e do financiamento das exportações chegou ao general Soares, por meio do economista Nelson Barbosa, diretor de planejamento e estruturação de projetos do BNDES. O setor da defesa responde hoje por 4,8% do PIB do País.
“Estamos em contato com o BNDES e estamos tentando viabilizar o Fundo de Defesa. Já conversei com o secretário-executivo do Ministério da Defesa (Luiz Henrique Pochyly da Costa). Estamos tentando fazer com que o fundo (cujo modelo seria o Fundo Amazônia) seja uma alavanca para algumas empresas da área, de modo a garantir nossa soberania na produção de equipamentos de Defesa”, disse o general à coluna.
Soares afirmou ainda ser muito importante que o País tenha condições de produzir os equipamentos e a munição usada por suas Forças. De acordo com ele, no caso da Imbel – empresa estatal vinculada ao Exército – e da Emgepron (estatal da Marinha) os recursos seriam emprestados pelo BNDES e seriam pagos com o “juros do banco” de uma maneira que as empresas poderiam captar os recursos do novo Fundo de Defesa e vender para as Forças ou para exportar.
É aqui que surge a principal aposta do Fundo: as exportações. “A partir daí (da exportação), o lucro auferido pagaria o empréstimo do BNDES, que seria usado para a compra de insumos e capitalizar as empresas”, afirmou o general. Há falta no mercado mundial de diversos produtos, que foram tragados pela guerra da Ucrânia. O conflito europeu esvaziou estoques e obrigou os países a buscarem novos fornecedores.
A Rússia usou 12 milhões de granadas de artilharia e de morteiros pesados em 2022 – produz 2,5 milhões por ano. Os EUA têm capacidade para fazer 400 mil e vão querem chegar a 1 milhão, parte comprometida com a Ucrânia, assim como a produção da alemã Rheinmetall AG, para os carros de combate Leopard 1 e os blindados antiaéreos Gepard 1A2 – só a unidade de Düsseldorf da empresa vai entregar 40 mil cartuchos de 35 mm à defesa ucraniana até dezembro. É este o maior gargalos enfrentados pelo Exército brasileiro, pois a Imbel precisa de recursos orçamentários para comprar insumos e fazer as granadas de artilharia.
Marinha e empresas se reúnem com o BNDES
A Marinha também negocia com o BNDES. No último dia 5, quatro almirantes, entre eles os diretores de Gestão de Programas (Celso Koga) e de Sistemas de Armas (Marcelo Menezes Cardoso), estiveram no banco. A Força dispõe do Fundo da Marinha Mercante (FMM) que, desde 2022, em razão da Lei 14.301, pode financiar a construção e os reparos em estaleiros brasileiros de “embarcações auxiliares, hidrográficas e oceanográficas, bem como de embarcações a serem empregadas na proteção do tráfego marítimo”.
Ou seja, navios de guerra. Esse seria o caso da principal aposta da Marinha para vendas no exterior: o navio-patrulha de 500 toneladas, que tem custo estimado em cerca de R$ 120 milhões. O novo fundo, segundo a Marinha, obedeceria modelo semelhante ao FMM. Ela confirmou que os recursos do BNDES seriam “aplicados em apoio financeiro reembolsável, mediante concessão de empréstimo às empresas públicas não dependentes vinculadas ao Ministério da Defesa, de até 100% do valor do projeto aprovado”.
A vantagem é que hoje tanto Emgepron quanto Imbel precisam contar com recursos orçamentários das Forças para a compra de insumos. E estes recursos são limitados pelo arcabouço fiscal. Em nota, a Emgepron afirmou que o BNDES permitiria obter recursos “a fim de se alavancar para execução de seus programas e projetos”. “Esse novo fundo será mais uma opção a ser avaliada no momento de captação”.
Os planos de exportação dos mísseis Mansup e MSS
Os recursos do BNDES ajudariam ainda a financiar o desenvolvimento do armamento embarcado da Marinha, como a do míssil antinavio Mansup, produzido pela SIATT, empresa que herdou o contrato da Odebrecht Defesa. O Mansup e o míssil anticarro MSS 1.2 AC, também produzido pela empresa, são duas das vedetes da indústria bélica nacional.
“O Fundo pode financiar nossas exportações de armas e usar os recebíveis como garantia. Entregaríamos parte da receita para honrar o contrato. Se isso for implementado, será uma mudança de paradigma. Hoje, quando fazemos uma venda, temos de pôr como garantia quase todo o patrimônio da empresa”, afirmou Carlos Alberto de Paiva Carvalho, diretor de competitividade da SIATT.
Aqui há, no entanto, o risco de um velho problema ligado às administrações petistas: usar o BNDES para financiar vendas ao exterior por critérios políticos, deixando de lado os problemas econômicos de países como Cuba, Venezuela, Argentina e outros para honrar seus compromissos com as empresas brasileiras. Desta vez, alertam os envolvidos, os clientes em potencial estariam fora desse arco ideológico.
Tanto o Mansup quanto o MSS despertam o interesse de países do Oriente Médio, do Sudeste Asiático e da África. Recentemente, a Marinha e o Grupo Edge, dos Emirados Árabes Unidos, assinaram um acordo para acelerar o desenvolvimento do míssil que pode ser disparado de embarcações ou a partir de baterias costeiras. Cada unidade do Mansup – já foram feitos cinco lançamentos a partir de fragatas brasileiras – deve custar entre US$ 3 milhões e US$ 4 milhões.
Compatível com o sistema de lançamento do míssil francês Exocet, que é líder do mercado, o Mansup faz do Brasil o sétimo país do mundo a dominar essa tecnologia – Coreia do Sul, EUA, França, China, Ucrânia e Rússia. Todos os seus sistemas sensíveis foram desenvolvidos no Brasil, o que garante autonomia ao País na venda do produto, sem precisar de autorização de outros países antes de consumar vendas no exterior.
No caso do MSS, a SIATT prevê concluir seus testes com mais 30 lançamentos neste ano, no campo de provas do Exército, no Rio. Ele deve encontrar um mercado aquecido em razão da guerra da Ucrânia, que está consumindo os estoques mundiais. “Hoje há uma fila de espera de até cinco anos para a compra desse produto, sendo que os países estão fugindo do maior fabricante, o do míssil russo Kornet”, disse Carvalho. A expectativa da SIATT é vender centenas de MSS ao exército brasileiros e outros tanto no exterior.
“Temos esperança de que as empresas de defesa, as estatais e as não estatais, tenham condição de produzir equipamento de defesa para o Brasil”, disse o general Soares. Para vencer as resistências aos gastos com a Defesa, ele e as empresas esperam demonstrar que o crescimento do setor pode ser acompanhado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, além da criação de empregos. Sem esquecer que deve passar pela adoção práticas de boa governança e de reformas que garantam a eficiência da política pública.
Em Paz e Guerra Entre as Nações, Raymond Aron indagava se a busca por novas armas era causa de conflito político ou, ao contrário, era o conflito político entre os blocos e países que motivava a corrida por armamentos. Esse desejo de segurança e força simboliza o que Aron chamou de “dialética da hostilidade em tempos de paz”. Ele pode agravar a insegurança entre os estados rivais, mas, ao mesmo tempo, não há como se deixar envolver pela grande ilusão do adeus às armas.
O mundo poderá encontrar um novo equilíbrio? Estaríamos submetidos a uma estratégia evolutivamente estável? O pensador francês advertia que, para se chegar a isso, não se devia contar só com os diplomatas. A ação devia respeitar uma obrigação: “Agir com o firme propósito de fazer com que a ausência de guerra se prolongue até o momento em que a paz seja possível – supondo que esse dia chegará.”