Falta de reforma para esse grupo eleva custo previdenciário; déficit civil tem trajetória diferente
Alexa Salomão | Folha de S.Paulo
Brasília - A discussão sobre gasto previdenciário ficou esquecida após a grande reforma em 2019. Houve redução em despesas da União nos primeiros anos. No entanto, os déficits ainda são pesados, pois as contribuições são insuficientes para pagar todas as aposentadorias, especialmente entre os militares, alertam especialistas.
Desfile de militares alusivo à Independência do Brasil, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), nesta quinta-feira (7) - Pedro Ladeira/Folhapress |
O economista Paulo Tafner, um dos maiores especialistas em Previdência, conta que o gasto com inativos no serviço público ainda permanece alto. Em vários estados e municípios, ele já superou a despesa com ativos, por exemplo.
"Muita gente no serviço público que entrou antes de 1998, quando ocorreu a reforma, tem direito à integralidade e ainda vai se aposentar", afirma. "Acredito que, em algum momento, o gasto com inativos até vá impedir aumento salarial para os ativos."
No caso dos militares, ele lembra que as mudanças foram feitas em 2019 por meio de projeto de lei, pois o tema não é matéria constitucional. Foi estabelecido um mesmo regramento para Forças Armadas em nível federal, PM e bombeiros no estados. Os seus efeitos, porém, não se mostram tão efetivos quanto o da reforma dos civis.
"A situação melhorou em relação ao que era, mas as medidas para os militares foram modestas em relação ao que poderiam e deveriam ser", afirma Tafner.
Logo após a reforma, o então Ministério da Economia estimou que a União teria uma economia de R$ 10,45 bilhões em dez anos com a reforma dos militares.
A diferença entre o que é desembolsado para cobrir os benefícios e o que é efetivamente gasto para pagar aposentados, reservistas e pensionistas é uma demonstração do descompasso financeiro, explica o economista Felipe Drumond, consultor da República.org, entidade que atua para ampliar as discussões sobre o funcionalismo público no Brasil.
Drumond fez paralelos com base nos dados do Anuário Estatístico da Previdência, o Aeps 2021, publicado em novembro de 2022, que consolida as informações mais recentes.
No caso da União, a receita anual para a Previdência dos militares cobre cerca e 15,5% do total das despesas com benefícios. A diferença cai na conta do Tesouro Nacional. Como o dinheiro vem dos impostos, Drumond explica que é como se todos os brasileiros arcassem com a despesa para cobrir o que falta.
Considerando o total do déficit anual, na casa de R$ 47,7 bilhões, e o número de beneficiários, que chega a 396 mil, os brasileiros desembolsam, todos os meses, cerca de R$ 9.603 para cada militar na reserva e seus pensionistas.
Os servidores civis na União cobrem 46% dos gastos com benefícios. O déficit é quase igual ao dos militares, R$ 48 bilhões, mas o número de beneficiários é muito maior. São cerca de 784,6 mil aposentados e pensionistas civis, o que cria um custo extra per capita mensal de R$ 5.111 para o bolso dos brasileiros.
O peso dos militares é muito desproporcional, diz Drumond. Os miliares e seus pensionistas somados equivalem a praticamente metade do número de servidores civis, mas custam quase o dobro, explica ele.
Estudioso sobre a Previdência, o economista Fabio Giambiagi avalia que o Brasil tem dificuldade de lidar com qualquer tema associado às Forças Armadas desde o fim da ditadura, o que inclui discutir Previdência e o impacto da categoria nos gastos.
"Para quem se aposentava no INSS, a gente foi lá e disse: 'Vocês vão ter de empurrar a aposentadoria para a frente. Vamos protelar uns sete a oito anos'. Tinha de ser feito, foi o coração da reforma e, no fim, todo o mundo aceitou", lembra Giambiagi.
"No caso dos militares, empurraram um pouquinho o prazo de aposentadoria, mas, para compensar, alteraram a estrutura de carreira, o que elevou a remuneração na ativa e teve o impacto de também elevar a aposentadoria lá na frente."
Segundo ele, a fotografia do gasto com servidores deixa claro o peso já desproporcional da categoria.
Segundo dados do Tesouro Nacional e do Ministério do Planejamento e Orçamento referentes a 2022, a União gastava o equivalente a 1,77% do PIB com funcionários ativos, incluindo militares, mais 1,53% com inativos. O total de gasto com servidores ficava em 3,3% do PIB.
Fracionando cada gasto entre civis e militares do Executivo, Legislativo e Judiciário, os militares representam a primeira despesa no grupo de pensionistas e a segunda entre ativos e aposentados, superando o Judiciário, cujos ganhos costumam ser destacados pelo alto valor. Dos 3,3% do gasto total, 0,95% já é do militares.
"A sociedade brasileira, em algum momento, vai precisar discutir o que ela quer dos seus militares", diz Giambiagi.
A situação também é complicada nos estados e no Distrito Federal. Os civis conseguem custear pouco mais de metade do déficit e, mesmo com as reformas realizadas em muitas unidades da Federação, ainda geram um rombo na casa de R$ 74 bilhões por ano.
Mensalmente, os Tesouros estaduais gastam, em média, quase R$ 3.000 per capita para cobrir aposentadorias e pensões de 2 milhões de servidores e pensionistas.
Os militares, por sua vez, cobrem 20% do gasto previdenciário, o que gera um rombo anual de R$ 38 bilhões. Os Tesouros, na média, desembolsam mensalmente R$ 6.700 per capita para completar os benefícios de 472 mil PMs na reserva e pensionistas.
A PM afirma que deu a sua contribuição após intensa negociação com a categoria.
"Tivermos a nossa reforma, e ela não foi pequena, não", diz Marlon Jorge Teza, coronel da reserva da PM de Santa Catarina e presidente da Feneme (Federação Nacional das Entidades de Oficiais Militares Estaduais).
Teza lembra que houve uma discussão sobre a permanência da Polícia Militar nos estados e como tratá-la quando veio o debate da reforma da Previdência.
"Houve um entendimento sobre o que representava a PM e a necessidade de que fosse mantida, mas avisaram: 'Vai ter uma reforma da Previdência para os civis e precisamos fazer mudanças no sistema de proteção social da PM, porque como está não pode ficar'. Aceitamos o esforço de negociar com a corporação", afirma Teza.
Segundo ele, o militar não tem como ser tratado igual ao civil, porque a dinâmica da função é muito diferente.
"No mundo, a força militar segue normas diferentes, está submetida a uma legislação mais forte e tem direitos limitados, inclusive os direitos civis, porque ela fica à disposição da nação para momentos de crise e deve cumprir as normas sem titubear. Militares perdem direitos, se arriscam e esperam uma retribuição no fim da vida, e essa é uma retribuição", afirma o coronel.
"Se querem que a gente seja igual aos civis, ok, nos tornem civis, com os mesmos direitos também, e seja lá o que Deus quiser."
A reportagem procurou o Ministério da Defesa e fez contato com segmentos militares para falarem sobre a reforma. Não houve posicionamento até a publicação deste texto.
ALGUNS PONTOS DA REFORMA DOS MILITARES
- Elevou o tempo mínimo de serviço para ter direito a entrar na reserva remunerada (militar não se aposenta) de 30 para 35 anos, inclusive para mulheres, que em muitos estados podiam se aposentar com 25 anos de serviço; não há idade mínima
- Previu reajustes anuais para militares até 2023
- Para as Forças Armadas, criou o adicional de compensação de disponibilidade militar, que varia, de acordo com a patente, de 5% a 32%; para oficiais-generais, o percentual vai de 35% a 41%
- Elevou a alíquota da contribuição de ativos e inativos, para pensões militares, de 7,5% para 10,5%, e para os pensionistas o recolhimento também passou a ser de 10,5% (não possui faixa de isenção nos descontos, como ocorre com civis); a alíquota pode chegar a 13,5% para filhas pensionistas vitalícias não inválidas (modalidade das Forças Armadas que não existe na PM)