Papel das Forças Armadas foi discutido por estudiosos e general na Câmara por iniciativa do PT, que quer mudar o artigo 142 da Constituição
Por André Barrocal | Carta Capital
No dia 22 de agosto, o Exército deve realizar um pregão para contratar uma pesquisa sobre sua imagem perante os brasileiros. O pano de fundo, é claro, são as várias investigações sobre Jair Bolsonaro que atingem militares. A pesquisa, orçada em 173 mil reais, também perguntará se a população apoia que as Forças Armadas trabalhem como polícia por certo tempo, nas operações de Garantia da Lei e da Ordem.
A pesquisadora Adriana Aparecida Marques, o deputado Rui Falcão e o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann (Foto: Agência Câmara) |
As GLOs estão previstas no artigo 142 da Constituição, definidor do papel das Forças Armadas. Deputados do PT querem mudar o artigo para acabar com brechas para a interpretação de que ali há respaldo a uma espécie de “golpe militar dentro da lei”, também abolindo as GLOs.
Certos aspectos da proposta foram debatidos na quarta-feira 16 em um seminário na Câmara dos Deputados. E o que se viu não foi lá muito agradável para os quartéis. A começar pelo impacto dos rolos de Bolsonaro.
Certos aspectos da proposta foram debatidos na quarta-feira 16 em um seminário na Câmara dos Deputados. E o que se viu não foi lá muito agradável para os quartéis. A começar pelo impacto dos rolos de Bolsonaro.
Para Felipe Santa Cruz, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, se a ‘promiscuidade’ entre farda e política continuar, a credibilidade militar irá pelo ralo. “Nesse exato momento, provavelmente nos canais de notícias há pessoas fardadas envolvidas em coisas que nós gostaríamos que não estivessem, porque comprometem a imagem das Forças Armadas”, disse.
Uma operação de 11 de agosto da Polícia Federal sobre possível desvio indevido, por Bolsonaro, de joias recebidas de presente durante o mandato alvejou diretamente dois militares: o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid e o segundo-tenente do Exército Osmar Crivelatti.
Santa Cruz comandava a OAB, quando Luiz Fux, então presidente do Supremo Tribunal Federal, decidiu sobre uma ação movida pelo PDT a respeito do artigo 142. Na decisão, o juiz entendeu que não havia intervenção militar constitucional – nem as Forças Armadas podem ser vistas como “poder moderador”, a pairar acima dos três poderes que realmente existem.
Esse “poder moderador” é resultado de uma certa interpretação do artigo 142. Seu propagador mais conhecido é o advogado Ives Gandra Martins. Sem ser citado pelo nome, Martins foi chamado pelo general da reserva Sergio Etchegoyen de “jurista famoso, célebre” defensor da ideia de “poder moderador”.
Etchegoyen estava no mesmo debate que Santa Cruz, promovido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara por iniciativa dos deputados petistas Rui Falcão (SP), presidente da CCJ, e Flavio Nogueira (CE). O general foi o número 2 do Exército no governo Dilma Rousseff e chefe do GSI, órgão de inteligência da Presidência, com Michel Temer.
Além de criticar o “poder moderador”, o general mostrou simpatia pelo fim das GLOs. Ou seja, colocou-se a favor da proposta do PT sobre o artigo 142. Um dos autores da proposta, o deputado Carlos Zarattini (SP), diz que negociações com o Exército e o Ministério da Defesa podem levar a certos ajustes nela. Por exemplo: manter a possibilidade de GLO em casos específicos, como greve de PMs. E Além disso, pode haver uma espécie de fusão dessa proposta com uma outra, encampada pela Defesa: a que obriga um militar a entrar para a reserva antes de disputar uma eleição.
Consensos à parte, Etchegoyen mostrou que compartilha de uma visão comum entre militares a respeito de sua importância e influência sobre a política brasileira.
“A história das nossas Forças Armadas se confunde com a história do povo brasileiro desde 1648, desde os episódios de Guararapes”, disse o general. Foi uma referência às batalhas contra invasores holandeses no Nordeste no século 17. O Exército propagandeia que nasceu ali, bem antes do Brasil, cujo marco zero é a independência em 1822. “E veio participando, goste-se ou não, aprove-se ou não, da formação da nossa nacionalidade (…), ajudou a construir a sociedade”, emendou o general.
“As Forças Armadas têm tradição de luta contra os brasileiros, não têm tradição de luta contra as potências interessadas nas riquezas do Brasil”, comentou em seguida, no debate, um historiador especializado em militares, Manuel Domingos Neto, ex-deputado federal pelo Piauí.
Domingos Neto prega uma reforma profunda no papel das Forças Armadas, para que elas se atenham à defesa da soberania e das fronteiras, especialmente na complexa geopolítica atual. O Exército tem o tamanho da Marinha e da Aeronáutica juntas e não deveria. Proteger o Brasil por ar e por mar seria mais importante, na visão do historiador.
A reforma exige, segundo o ex-deputado, acabar com o “monstrengo” que é o artigo 142, incluído na Constituição por obra do primeiro ministro do Exército depois da ditadura militar, o general Leônidas Pires Gonçalves. Através das GLOs, o artigo permite que os fardados estejam presentes demais no dia a dia do País.
Além disso, ressaltou Neto, é preciso que os quartéis tenham mais pluralidade de pensamento, gênero e raça. “Não há um discordante da ideologia hegemônica das Forças Armadas que ascenda aos escalões superiores”, lamentou. “Todos são de direita. E o percentual de ultraconservadorismo é bastante acentuado, a ponto de colocar em risco as instituições nos últimos anos.”
A falta de pluralidade no meio militar foi salientada no debate por uma colaboradora da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, Adriana Aparecida Marques, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ela, é um “desalento” ter de discutir o papel dos quartéis após mais de 30 anos do fim da ditadura e da Constituição. Expõe, completou, “o momento delicado que estamos vivendo”.
Adriana acredita que há uma “militarização” do País, a começar pelo Ministério da Defesa, criado em 1999 justamente como medida desmilitarizadora e para colocar os coturnos sob controle civil. Como anotava o historiador José Murilo de Carvalho, especializado em militares e morto nos últimos dias, há décadas as Forças Armadas se dedicam a estudar temas civis, mas o contrário não ocorre.
O Congresso pode ajudar a conter os quartéis, segundo Adriana, caso pare de se omitir e exerça o papel de órgão de controle. Visão que outro debatedor, o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, verbalizou também. “Este Congresso nunca assumiu as responsabilidades de examinar, de debater, tanto a Política Nacional de Defesa como a Estratégia Nacional de Defesa”, afirmou.
Os fardados, contudo, querem ter voz nesse mesmo Congresso e na vida nacional em geral. “É impossível imaginar que os militares não tenham participação política”, afirmou Ecthegoyen. “Preocupa-me muito a questão da representatividade, como resolver o problema da representatividade. Quem vai representá-los?”
Eis aí uma ideia que leva à conclusão de que o Brasil, de fato, convive com um “Partido Militar”, como diz um fardado crítico contundente da politização das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, o coronel da reserva Marcelo Pimentel de Souza.