Ángel Bermúdez | BBC News Mundo
Depois de uma vitória retumbante nas eleições legislativas no Japão na semana, o primeiro-ministro, Fumio Kishida, anunciou que pretende promover uma reforma da Constituição e aprofundar o debate sobre as medidas necessárias para "fortalecer drasticamente" a defesa do país em meio a um clima difícil de segurança.
A proposta de reforma, que há anos vinha sendo defendida sem sucesso por Abe, significaria a primeira mudança na Constituição japonesa desde sua promulgação, em 1947. O governo quer mudar o simbólico artigo 9º, cujo texto estabelece que "o povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como meio de solução de disputas internacionais".
A iniciativa desperta resistência tanto dentro como fora do país, apesar de supostamente procurar apenas consagrar a constitucionalidade das Forças de Autodefesa do Japão (como são conhecidas as forças militares do país).
Mas por que a reforma gera polêmica?
Mudança histórica
"Para entender o significado da Constituição no Japão, é importante voltar à história deste país após a Segunda Guerra Mundial. As autoridades de ocupação dos Estados Unidos ajudaram a escrever a Constituição do pós-guerra que se tornou lei em 1947", diz John Nilsson-Wright, professor de Política Japonesa e Relações Internacionais na Universidade de Cambridge, à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC).
"Essa Constituição não foi alterada ou emendada sequer uma vez desde que foi introduzida pela primeira vez e é vista por muitos conservadores no Japão, com ou sem razão, como algo estranho, que não serve como documento soberano de uma nação soberana. A questão da emenda, portanto, é para muitos da direita no Japão um assunto pendente da Segunda Guerra Mundial", diz.
Mas enquanto a direita quer reformar a Carta Magna, a esquerda teme que o texto seja alterado.
"A Constituição é vista pela esquerda como garantia da cultura política democrática do Japão, e o fato de que ela foi introduzida pelo lado vencedor da guerra (os EUA) tem sido visto pela esquerda como prova de que o Japão havia abandonado o militarismo do período anterior à guerra. Por isso, tem sido uma questão política tão explosiva", explica o professor.
David Boling, diretor de Japão e Comércio Asiático da consultoria Eurasia Group, aponta que a experiência da Segunda Guerra Mundial foi tão ruim para o Japão que muitos de seus cidadãos concluíram que a guerra, em geral, é um desastre e, por isso, o país desenvolveu uma tendência pacifista.
"No Japão, há muitas pessoas que se orgulham muito da Constituição. Muitas vezes se referem a ela como a Constituição da Paz de maneira muito positiva. Portanto, há um grupo interno que se sente orgulhoso desse texto", afirma.
Do pacifismo à autodefesa
Entre os críticos da possível reforma constitucional, há preocupação de que o governante Partido Liberal Democrático (LDP, na sigla em inglês), ao qual pertencia Abe e agora é liderado por Kishida, queira eliminar as restrições à força militar previstas no artigo 9º da Constituição.
De acordo com Sheila Smith, pesquisadora de estudos da Ásia-Pacífico no Council on Foreign Relations (uma consultoria com sede em Washington), não é isso que está sendo considerado atualmente.
"As propostas atualmente apresentadas pelo Partido Liberal Democrata não preveem a eliminação do artigo 9º, mas simplesmente a sua modificação para acrescentar outra frase", afirma.
"Certamente há algumas pessoas dentro desse partido que querem ir mais longe e mudar o nome das Autodefesas ou coisas assim, mas não há nenhuma proposta no momento para se livrar do artigo 9 e isso não tem apoio nem no LDP e nem entre os cidadãos. Mas os críticos se concentram no artigo 9 porque é uma parte central da identidade japonesa do pós-guerra."
Ele explica que embora ainda não haja um texto concreto em discussão — apenas ideias — até o momento a proposta sugere que reconhecer a natureza constitucional das Autodefesas para deixar claro que elas são consistentes com a Carta Magna.
A Constituição do Japão, aprovada durante a ocupação americana, procurou eliminar qualquer possibilidade de remilitarização do país, expressando literalmente que "nenhuma força terrestre, marítima ou aérea será mantida no futuro, nem qualquer outro potencial bélico".
Mas ao longo dos anos essa proibição literal foi sendo reinterpretada e adaptada às mudanças do contexto internacional.
David Boling ressalta que as Autodefesas vêm mudando progressivamente porque durante décadas elas eram apenas um órgão do governo. Depois foi criado o Ministério da Defesa e, posteriormente, durante o governo Abe, foi estabelecido um Conselho de Segurança Nacional dentro do gabinete do primeiro-ministro para coordenar as políticas de segurança.
Uma das grandes mudanças nesse sentido ocorreu em 2014, quando o governo Abe promoveu uma reinterpretação da norma constitucional que fala da defesa do país.
"O gabinete de Abe aprovou uma reinterpretação do artigo 9 que dizia que as Forças de Autodefesa Japonesas — se necessário para a segurança e sobrevivência do Japão — poderiam usar a força em nome de outras nações como os EUA ou a Austrália, por exemplo. Foi uma reinterpretação muito cautelosa", diz Sheila Smith.
No ano seguinte, uma nova lei foi criada com base nessa reinterpretação. Assim, as Autodefesas obtiveram a possibilidade de usar a força em apoio a outros países se fosse necessário para a segurança do Japão.
David Boling observa que essas mudanças melhoraram a capacidade do Japão de trabalhar em questões militares com outros aliados, como os EUA, mas que o país segue limitado em sua esfera de ação.
"O Japão não está na mesma situação que a Austrália ou a Coreia do Sul em termos do tipo de operações militares que pode realizar ao lado dos EUA, por isso uma mudança constitucional pode tornar tudo mais claro e permitir que — como Shinzo Abe costumava dizer — o Japão funcione mais como um país normal quando se trata de questões de defesa."
Ambiente mais hostil
Quaisquer mudanças na defesa que o Japão fizer serão observadas de perto por alguns de seus vizinhos, especialmente China, Coreia do Norte e Coreia do Sul.
"Esses países ficarão muito preocupados. É por causa do legado dos tempos da guerra. Eles foram invadidos pelas forças imperiais japonesas e ainda têm uma memória muito forte disso. Por isso, a revisão constitucional para eles desperta o medo de que o Japão abandone sua restrição do pós-guerra", observa Sheila Smith.
Paradoxalmente, foram justamente as ações de dois desses vizinhos que serviram para justificar os esforços de Tóquio para ter uma política de defesa com menos restrições.
"Para a opinião pública japonesa, o crescimento da China como ator militar é uma preocupação primordial. Navios navais chineses aumentaram suas invasões em águas muito próximas ao continente japonês, as chamadas Ilhas Senkaku, a sudoeste de Okinawa, que são reivindicadas pela China, mas mantidas pelo Japão", diz John Nilsson-Wright.
Ele explica que muitas pessoas no Japão estão preocupadas à medida que a China se torna mais assertiva, assim como a ameaça nuclear da Coreia do Norte e seus mísseis balísticos. E que os políticos japoneses também estão preocupados com a confiabilidade de longo prazo dos EUA como parceiro de segurança.
"Por isso, acho que a revisão constitucional pode ser vista por algumas pessoas como uma forma de dar ao Japão mais flexibilidade para proteger sua própria segurança em um momento em que, a longo prazo, há uma sensação de que o mundo está se tornando mais hostil ao crescimento da China e da Coreia do Norte e a confiabilidade das alianças existentes não podem ser consideradas perenes."
Em termos de capacidades, o Japão vem se fortalecendo e atualmente é um dos 10 países do mundo com os maiores gastos militares. Em abril, o Japão anunciou planos para dobrar seu orçamento de defesa para atingir 2% de seu PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços produzidos por um país).
"As Forças de Autodefesa são um exército de fato que tem capacidade terrestre, marítima e aérea. A razão pela qual isso é constitucional é porque o artigo 9 foi redigido de tal forma que permite ao governo japonês dispor de forças militares para fins puramente defensivos, ou seja, não podem ser usados para travar uma guerra de agressão", explica Nilsson-Wright.
Uma reforma difícil
Para realizar a reforma constitucional e modificar o artigo 9º da Constituição, é necessário ter maioria de dois terços nas duas casas do Congresso, além da ratificação das mudanças por meio de um referendo nacional.
Sheila Smith alerta que não será fácil alcançar o consenso necessário, pois a coalizão governista terá que conquistar o apoio de partidos menores na Câmara Alta e que, além disso, todos precisam concordar com as mudanças que desejam aprovar, o que exigirá tempo e esforço.
A especialista indica que, além das modificações ao artigo 9, há outras propostas de mudanças que também estão em jogo relacionadas ao acesso à educação, aos circuitos eleitorais e aos poderes do Executivo.
Em contrapartida, algumas dessas questões podem atrair eleitores para os quais, David Boling aponta, a reforma constitucional não está atualmente entre suas preocupações mais urgentes.
"Se você olhar para as pesquisas sobre as questões mais importantes para o público japonês, a alteração da Constituição é menor do que, digamos, controle da inflação, questões de previdência social ou política educacional. Então, embora haja muito interesse neste tema entre as autoridades eleitas no Japão, ele não é uma grande prioridade para o público em geral, então será interessante ver como isso evolui nos próximos meses."
No caminho para a possível aprovação da emenda ao artigo 9 há um obstáculo a menos após a morte de Shinzo Abe. O falecido ex-primeiro-ministro, que fez desta questão uma bandeira, era visto por muitos como um político que promovia um revisionismo histórico, o que gerava uma certa rejeição em parte da população.
"Kishida não é Abe e, portanto, acho que o público será mais simpático à ideia de uma emenda não polêmica à Constituição que não mude substancialmente a maneira como as forças de autodefesa são usadas, mas simplesmente reconhece que elas são uma parte importante das capacidades defensivas do Japão", diz Nilsson-Wright.
"Especialmente fora do Japão, mas mesmo dentro do país, Abe era visto por algumas pessoas como mais belicoso. Então, Kishida é a pessoa ideal para apoiar essa ideia porque ele pode apresentá-la de uma maneira que seja menos preocupante para os eleitores japoneses", acrescenta.