Edison Veiga | Deutsch Welle
Foram 2 anos e sete meses de trabalhos, resumidos em um relatório de cerca de 2 mil páginas, em que foram apontados 377 responsáveis por crimes durante a ditadura militar brasileira – que durou de 1964 a 1985. O documentou fixou em 434 o número de mortes e desaparecimentos de vítimas do regime.
Protesto contra a ditadura militar em 1968 | Foto: Arquivo Nacional |
Há exatos 10 anos, em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) iniciava seus trabalhos. No período em que atuou, até dezembro de 2014, colheu 1.120 depoimentos, produziu 21 laudos periciais e realizou 80 audiências públicas. Ao fim de tudo, a CNV recomendou, entre outras coisas, que as Forças Armadas reconhecessem a prática de torturas em instituições mantidas pelo regime militar.
Se, por um lado, a devassa em documentos públicos e oitivas de diversos envolvidos é destacada como positiva, por outro, as duas maiores críticas são a demora para a instituição da comissão – quase 30 anos após o fim da ditadura – e a não punição dos envolvidos.
"O grande resultado da Comissão Nacional é o relatório: é uma peça fantástica, o melhor documento da história do Brasil recente", afirma o ativista pelos direitos humanos e ex-deputado estadual Adriano Diogo, que presidiu a versão estadual de São Paulo da Comissão da Verdade.
Contudo, ele critica a falta de efetividade. Teoricamente, comissões como essa são consideradas "justiça de transição", ou seja, são instituições criadas quando acabam períodos autoritários, exatamente para passar a limpo o passado recente. Há um tripé que une essas iniciativas pelo mundo: a defesa da memória, a busca pela verdade e o empenho para que se faça justiça.
"Mas aqui no Brasil não se pune torturador, não se julga torturador, não se condena torturador", afirma Diogo. "Quando a Comissão da Verdade veio, veio totalmente manca. Dos três vértices, só tinha dois: memória e verdade. Faltou justiça, porque os militares não quiseram e não autorizaram, nem o Congresso aprovaria."
"Faltou justiça"
Diogo atenta para o fato de que "o julgamento, o castigo, não estava previsto" nas recomendações do relatório final. Dentre os 29 itens do capítulo, há preocupações quanto à necessidade de desmilitarização das polícias estaduais e a ideia de não se permitir festejos que celebrem o golpe de 1964.
Mas o mais próximo de punição previsto pelo texto é a recomendação de responsabilização das Forças Armadas pelas violações de direitos humanos durante o período ditatorial, e de determinação, via órgãos públicos, de responsabilidade jurídica aos agentes públicos que cometeram tais crimes.
"Quem pune é o Ministério Público, a Comissão da Verdade não podia propor a punição", ressalta Diogo.
De acordo com balanço do Ministério Público Federal, sob a rubrica de justiça de transição foram oferecidas 40 denúncias nos últimos anos, com "60 agentes de Estado ou pessoas a serviço da União" apontados como "autores de graves violações de direitos humanos cometidas contra 53 pessoas", informa o órgão.
Pesquisadora dos aparelhos de repressão, a historiadora Monica Piccolo Almeida, professora na Universidade Estadual do Maranhão, reconhece que "muitos acontecimentos da ditadura, principalmente a violação dos direitos humanos, vieram à tona" com a CNV. Mas reclama da "incapacidade da comissão de judicializar tudo o que foi descoberto".
"Esse manto colocado sobre os violadores [com a Lei da Anistia, de 1979] inviabiliza qualquer outra atuação e acabou amarrando juridicamente a capacidade da comissão de atuar mais efetivamente com possibilidade de punição e responsabilização desses violadores. Faltou justiça", conclui a historiadora.
Quase três décadas após a ditadura
O historiador Leonardo Leal Chaves, também pesquisador na Universidade Estadual do Maranhão, lamenta o atraso na instituição da CNV, cujos trabalhos foram iniciados apenas 27 anos após o fim da ditadura. Segundo ele, isso prejudicou a "tentativa de apuração desses crimes".
Especialistas ouvidos pela reportagem concordam que essa demora ocorrida no Brasil se deveu a pressões dos militares nas cúpulas dos governos, de José Sarney a Luiz Inácio Lula da Silva, passando por Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
"Essa demora foi resultado da interpretação da Lei da Anistia, que criou no âmbito nacional uma situação de impunidade", aponta o cientista político e jurista Manoel Moraes, professor na Universidade Católica de Pernambuco, onde é coordenador da cátedra Unesco de Direitos Humanos Dom Helder Câmara.
E se a CNV foi aberta apenas no governo de Dilma Rousseff, foi muito mais por pressão internacional do que por iniciativa da petista – ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime militar.
A comissão foi instituída na esteira do processo internacional de direitos humanos conhecido como Caso Gomes Lund, julgado em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a República brasileira, por conta dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
"A Comissão da Verdade foi criada capenga, porque era uma resposta a essa condenação que o Brasil sofreu pelos crimes cometidos no Araguaia", pontua o militante Diogo.
Avanço do ponto de vista democrático
Contudo, mesmo que deixe a desejar quanto à real responsabilização dos culpados, a CNV é vista como um avanço do ponto de vista democrático, justamente por esmiuçar acontecimentos recentes que, por vezes, tendem a ser relativizados por determinados grupos políticos com interesses revisionistas.
"Foi um trabalho extremamente necessário, uma vez que trouxe à tona, muitas vezes com documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro, questões que costumam ser minimizadas, até mesmo dentro da academia, com o uso do termo 'ditabranda'”, diz o historiador Chaves.
Para o jurista Moraes, apesar da lentidão, o processo de punição ainda está em curso no país. "As investigações permitiram mostrar o que as graves circunstâncias que os militantes sofreram durante a ditadura militar", afirma ele. "Posteriormente, o MPF já abriu uma série de investigações com base no relatório da CNV."
O longo relatório produzido pela comissão esmiuçou os aparelhos de repressão, explicou o modus operandi dos centros de informações dos militares e, nos pontos mais chocantes, descreveu os chamados "métodos e práticas nas graves violações de direitos humanos e suas vítimas", enumerando as formas de detenção ilegal ou arbitrária; tortura; execução sumária; e desaparecimento forçado.
Quando foi publicada, a peça foi tachada de "absurda" por instituições militares, que passaram a desacreditar a seriedade do trabalho da CNV.
Pesquisador de crimes praticados pelo regime militar no Brasil e autor do livro Cativeiro Sem Fim: As histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil, o jornalista Eduardo Reina considera que a comissão fez um trabalho "positivo para o país”, pois "é preciso criar uma justiça de transição, apontando as pessoas culpadas pelos crimes e excessos cometidos".