Igor Gielow | Folha de S.Paulo
Um dia depois de a Otan prometer reforçar a ajuda militar para a Ucrânia combater a invasão russa, o presidente Vladimir Putin elevou o tom do que vê cada vez mais como uma guerra contra o Ocidente. Ameaçou abertamente o uso de armas nucleares e, fora da retórica, bombardeou um grande depósito de armas doadas a Kiev.
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"Se alguém quer interferir no que está acontecendo na Ucrânia agora, tem de saber que a resposta da Rússia será rápida e certeira", afirmou a deputados em São Petersburgo. "Temos todo tipo de ferramenta que o Ocidente não pode ter, e nós não vamos ostentar nossas armas, mas sim vamos usá-las se for preciso. Quero que todos saibam disso."
As ferramentas em questão são, dispensável dizer, armas nucleares — a Rússia tem o maior arsenal do mundo, seguido de perto pelos EUA. Putin vem usando essa ameaça desde o dia 1 do conflito, e na segunda o seu chanceler, Serguei Lavrov, havia falado que a Terceira Guerra Mundial era um "risco sério e real".
Até aqui, o Ocidente deu de ombros, em termos. Segue medindo a elasticidade da linha vermelha que Putin diz ter desenhado para intervenções na Ucrânia, tendo evitado por exemplo até aqui o envio de caças. Mas nas últimas semanas a sofisticação das armas doadas cresceu, para tentar acompanhar a nova fase da guerra, a batalha mais aberta no leste e sul do país.
Mais importante, o russo mandou um sinal militar, além da retaliação econômica ao cortar o gás natural fornecido à Polônia e à Bulgária. O Ministério da Defesa propagandeou um ataque com mísseis de cruzeiro Kalibr, disparados do mar Negro, contra um depósito de armas dos EUA e da Europa numa fábrica de alumínio de Zaporíjia, uma das cidades na rota dos atuais ataques russos.
Ninguém contestou a informação. Até aqui, a Rússia não havia atacado comboios com as armas, presumivelmente para evitar eventuais baixas ocidentais, e as ações contra depósitos não eram alvo de publicidade. No geral, até por estar pressionado pela continuidade da guerra, vinha evitando assim como o Ocidente reações mais incisivas.
Ao mesmo tempo em que morde, o Kremlin também parece ter arrumado tempo para assoprar. Operou uma troca de prisioneiros rara com os EUA, e fez suas agências de notícia destacarem uma informação de que a Turquia acredita num encontro próximo entre Putin e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, algo que parece fora do radar.
Na segunda (26), a aliança militar ocidental comandada pelos Estados Unidos deixou de lado alguns dos pudores aos quais se aferrava e anunciou um aumento da ajuda bélica aos ucranianos — que já receberam de fato ou em promessa mais de US$ 7 bilhões desde o começo da guerra, em 24 de fevereiro.
Sinalizou prever um conflito prolongado, pois criou um escritório para centralizar essas remessas que se reunirá uma vez por mês para discutir prioridades. Isso foi visto, claro, como um passo a mais no envolvimento ocidental na guerra.
A Folha conversou com duas pessoas ligadas a setores militares em Moscou que, por óbvio em tempos de conflito, não podem se identificar. Ouviu um relato segundo o qual a Guerra da Ucrânia já é tratada abertamente como um embate físico com o Ocidente.
Há a avaliação óbvia de que o poderio militar conjugado dos países da Otan supera o da Rússia em caso de o conflito extravasar as fronteiras ucranianas. Mas que Moscou tem vantagens táticas que não foram aferidas porque trata a ação no vizinho como uma operação especial, sem mobilização nacional que lhe garantira mais poder de fogo e recursos humanos.
E, claro, há a bomba atômica. As duas pessoas se disseram certas de que o país usaria o artefato em caso de uma catástrofe militar iminente. Ambas afirmam que o clima nas Forças Armadas não é de desejo pelo fim da guerra, mas sim de sua intensificação para ao menos finalizar aquilo que foi transparecido por um general na semana passada: conquistar o Donbass (leste russófono) e estabelecer uma ligação até a Crimeia anexada em 2014 ou até a Transnístria, região separatista russa na Moldova que registra instabilidade.
Entre os militares a que as pessoas têm acesso, a crítica ao Kremlin não é pacifista: eles acham que deveria ter sido feito um esforço concentrado para tomar Kiev, e não a ação em múltiplas frentes, que deixou a tentativa de tomar a capital desguarnecida.
Para exemplificar o grau de animosidade com os EUA, elas citaram uma reportagem publicada na segunda pela rede de TV americana NBC. Segundo ela, a ajuda militar a Kiev vai além de compartilhar fotos de satélite e enviar armas.
Os americanos participam, segundo o relato, de forma ativa na designação de alvos e na previsão dos ataques russos, protegendo assim baterias antiaéreas de mísseis, por exemplo.
Mais grave para Moscou, os EUA teriam dado as coordenadas para que ao menos um grande avião de transporte Il-76 pode ter sido abatido na tentativa de estabelecer uma cabeça de ponte em Hostomel, perto de Kiev, com centenas de soldados a bordo.
Como escreveu no Twitter um dos mais argutos observadores militares da guerra, Rob Lee (King's College, Londres), o fato é que se sabe muito pouco acerca do que acontece em campo. Isso dito, disse, "eu acho que o nível de inteligência compartilhada pelos EUA talvez não tenha precedente na história militar".
Um artigo publicado pelos jornalistas investigativos russos Irina Borogan e Andrei Soldatov, do Centro para Análise de Políticas Europeias (Washington), descreve um cenário semelhante de insatisfação e uma guerra silenciosa entre militares, espiões e os setores de inteligência considerados culpados pela má qualidade da informação prévia sobre o ânimo ucraniano.
Um general responsável pela área no FSB, a principal agência de segurança russa, foi inclusive preso, segundo os autores. Há até alguns sinais públicos: o famoso blogueiro Alexander Arutiunov, um veterano de forças especiais, cobrou publicamente Putin no Telegram. "Caro Valdimir Vladimirovitch [prenome e patronímico do presidente], por favor decida se estamos lutando uma guerra ou nos masturbando", disse.