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O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará duas ações que podem limitar os poderes da Justiça Militar e criar um embate com as Forças Armadas.
© Foto / Dorivan Marinho/Divulgação/STF |
Uma delas pretende retirar desse segmento do Judiciário a atribuição de analisar crimes cometidos por integrantes do Exército em operações de Garantia da Lei e da Ordem, como nos casos de ocupações em favelas e de ações de proteção às fronteiras, enquanto a segunda é um pedido para que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempos de paz.
Explicando o assunto à Sputnik Brasil, o presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Sergio Sant'Anna, cita que a Justiça Militar é uma Justiça criada no Brasil quando a família real portuguesa chegou ao país em 1808.
"A importância dela [da Justiça Militar] é mais de caráter histórico, porque, a todo modo, é a primeira Justiça que foi criada no Brasil, justamente em 1808, e tendo como principal objetivo fazer o julgamento de crimes militares", explicou.
Além disso, ele ressaltou que na Constituição Federal de 1988 a Justiça Militar foi ampliada em relação às competências, mas esse não foi o momento mais significativo. Passando por diversas modificações, contudo, as constituições vêm mantendo a estrutura, já que há um alto grau de corporativismo, e os militares acabam tendo um instrumento de pressão forte.
"E aí não há muito interesse em embates maiores em relação ao tema, mas tem uma legislação que ampliou bastante o rol de competências e ela é mais recente. É a lei 13.491 de 2017, que é uma legislação que aprovada no Congresso Nacional ampliou o hall de crimes militares, por consequência aumentando a competência tanto da Justiça Militar Federal quanto Estadual dos estados que compõem o nosso sistema federativo", afirmou.
Rever papel da Justiça Militar no ordenamento jurídico brasileiro
Para Sergio Sant'Anna, há a necessidade de rever o papel da Justiça Militar no ordenamento jurídico brasileiro.
"Ao meu juízo não deveria haver Justiça Militar. Se tivesse que ter uma Justiça Militar, ela seria uma Justiça muito menor e mais enxuta. Embora ela seja considerada a Justiça que tem no sistema judiciário o menor orçamento, ainda assim é um orçamento extremamente grande porque movimenta uma máquina do Ministério Público Militar, tem os servidores militares que atuam em seu entorno e tem algumas inconveniências", ressalta.
Segundo o especialista, um exemplo destas inconveniências é o fato de a mais alta instância, que é o Superior Tribunal Militar, possuir 15 membros, sendo que 10 são militares da ativa que não têm formação jurídica.
E, por isso, ela acaba sendo considerada uma Justiça corporativa que possui algumas interpretações no sentido de se beneficiar, principalmente se for relacionada a militar contra a civil.
Crimes cometidos por militares em operações de garantia da paz e ordem
De acordo com o especialista, o STF vai enfrentar algumas questões envolvendo o descumprimento do preceito fundamental e o habeas corpus, e uma dessas ações tem a ver com os crimes cometidos por militares durante as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que foram intensificadas principalmente durante o período da presidente Dilma Rousseff por ocasião dos grandes eventos, como Olimpíadas, Jornada da Juventude, Jogos Mundiais Militares e diversos outros.
"Isso se mostrou um verdadeiro fracasso, os militares têm uma visão diferente da área de segurança dos Estados, porque as competências são muito bem definidas na Constituição. A competência de um militar federal é basicamente a defesa da soberania, ele é preparado para a guerra, não é preparado para fazer policiamento, abordagem. Então isso foi muito ruim, vários problemas aconteceram, muitos inclusive foram encobertos, e eu acredito que talvez nós tenhamos que enfrentar nesse julgamento do STF, pela primeira vez de uma forma mais efetiva, essa situação", afirmou.
Julgamento de civis pela Justiça Militar
Conforme Sergio Sant'Anna, a Justiça Militar acaba sendo extremamente complexa e, apesar de a democracia ter um tempo curto, houve um período de estabilidade em que as Forças Armadas estavam limitadas ao seu papel constitucional.
"Infelizmente, com essa mudança que houve com esse governo de Jair Bolsonaro, que é um militar da reserva [...] mas ele entrou com uma das propostas para beneficiar os segmentos militares, que são muito beneficiados no Brasil. Eles não estão participando da reforma previdenciária, não entram na discussão da reforma administrativa, eles têm uma série de vantagens [...]", enfatizou.
O especialista volta a afirmar que este é um tema muito complexo, pois essa questão da Justiça Militar julgar civis, ela acaba sendo uma situação também relacionada à interpretação, pois alegam que são civis que estão, de alguma forma, fazendo aquilo que seria definido como "crime militar", e o que está em jogo no julgamento do Supremo é até que ponto essa ampliação pode permitir que tenhamos uma ampliação cada vez maior, "inclusive com aval do STF, que seria preocupante em relação a estes crimes cometidos por civis".
É preciso aguardar para ver quais seriam as mudanças que o STF poderia aprovar, pois há uma série de argumentos, fundamentos, que poderiam ter uma interpretação diferenciada por parte do STF.
Competência da Justiça Militar volta à pauta
Comentando os motivos que fizeram com que as competências da Justiça Militar voltassem à pauta, o especialista recorda que, durante os governos Lula e Dilma, houve algumas iniciativas por parte do Ministério Público Federal, e essa foi uma delas, no sentido de fazer uma mudança, uma revisão da competência da Justiça Militar, inclusive por conta de não concordar com a maneira de como estava sendo interpretada.
"O objetivo era justamente mudar essa correlação de forças, essa previsão, interpretação da maneira como era [...]", declarou.
Além disso, ele afirmou que ainda não está claro o motivo pelo qual Luiz Fux resolveu enfrentar este tema agora, se tem a ver com alguma negociação com "o presidente da República" ou outras iniciativas.
"É uma coincidência nesse momento atual, você ter esse tema vindo à baila para debate, mas por sua vez, também, em dado momento isso teria que voltar, talvez seja até estratégico voltar este ano do que o ano que vem, porque como o ano que vem é o ano eleitoral, e o presidente da República tem a intenção de se reeleger, isso talvez pudesse criar uma situação de pressão. Até porque o ano que vem no Brasil é o ano do bicentenário da Independência. Nós vamos completar 200 anos de Independência, e isso também poderia ser um instrumento de pressão, até por conta da tradição histórica", explicou.
Momento delicado para julgar competência da Justiça Militar
Com relação ao momento em que o STF vai julgar os assuntos relacionados à competência da Justiça Militar, o especialista retifica que no Brasil atualmente está tendo um determinado grupo, que tem uma pressão de extrema direita, junto com o presidente da República, que tentam conferir uma interpretação ao artigo 142 da Constituição, que é o artigo que prevê o papel das Forças Armadas, onde tentam fazer uma alusão de que o presidente da República poderia convocar as Forças Armadas para diluir conflitos entre os demais poderes.
"É lamentável este tipo de interpretação, principalmente vindo de juristas, porque isso não tem nenhuma lógica, isso não foi previsto dessa forma, não pode ser interpretado dessa forma e é um verdadeiro absurdo", ressaltou.
Sergio Sant'Anna também explica que existe uma pressão por parte de determinados setores, principalmente porque em 2020 e 2021 o STF teve papel de protagonismo e bateu de frente em vários momentos com o presidente da República, então, esse também pode ser o momento para que se tenha algum tipo de composição.
De acordo com o especialista, no dia 7 de setembro Bolsonaro defendeu um golpe junto aos aliados, tentando pressionar o STF, enfim, ele tenta criar instrumentos de pressão e depois ele volta atrás, indicando a falta de clareza em relação à pauta da Justiça Militar justamente agora.
"É evidente que como democrata, como constitucionalista, como defensor do Estado de direito, é claro que esses segmentos que são favoráveis à Constituição, à Democracia, esperam que se confira uma interpretação conforme a Constituição, definindo uma competência para a Justiça Militar compatível com sua importância, ou seja, quase nenhuma, porque a Justiça Militar brasileira tem essas incoerências, tem a situação do corporativismo e não é o momento de ampliar a competência, pelo contrário, é o momento de diminuir [...] até chegar o momento de não existir mais", concluiu.
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