Marcelo Godoy | Portal Estadão
Caro leitor,
Há quem pense que o Brasil precisa de um tenente-general como Stephen Whiting, chefe do Comando de Operações Espaciais do Estados Unidos. Ele assinou uma nota exemplar sobre como lidar com oficiais que se tornam guerreiros ideológicos, essa espécie militar retratada no filme Doutor Fantástico.
Confissão de voto de Carlos de Almeida Bolsonaro Baptista Jr, exposta pela deputada Bia Kicis é mais um episódio de politização dos quarteis sob Bolsonaro; caso foi revelado pelo Estadão |
Na obra do diretor Stanley Kubrick, o general Jack D. Ripper é um paranoico anticomunista que resolve começar uma guerra nuclear porque os russos estariam envenenando a América com a fluoretação da água.
O subtítulo do documento de Whiting podia ser: "Como parei de me preocupar com a política e cuidei da disciplina". Pois foi isso que ele fez ao remover do comando da 11.ª Esquadrão de Controle Espacial o tenente-coronel Matthew Lohmeier. Motivo: "A perda da confiança e da segurança em sua capacidade de liderança".
A decisão foi tomada com base em comentários públicos feitos pelo tenente-coronel em uma transmissão de rádio. Ao mesmo tempo, o general mandou abrir uma investigação, pois as declarações do coronel constituíam "atividade político-partidária proibida".
O coronel esteve em um programa da direita americana para contar sua teoria sobre como o marxismo está se infiltrando nas Forças Armadas. Ele publicou recentemente um livro em que deixa claro sua condição de general Ripper: Irresistible Revolution: Marxism's Goal of Conquest & the Unmaking of the American Military.
Ou seja, acredita em uma revolução marxista que pretende dominar a todos e desmantelar as Forças Armadas dos EUA. O coronel é trumpista de invadir capitólio, pessoa tomada pelo medo: tem medo de professor, de homossexuais, de vacinas e da derrota. E quem tem medo, tem ódio. Precisa de inimigos para se vender como protetor ou profeta.
É missão dos comandantes garantir a higidez de suas tropas. Os Estados Unidos tem o tenente-general Whiting. E o Brasil? Aqui, nossas Forças Armadas convivem com o comandante da Força Aérea, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr, que declarou à deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) que votou na parlamentar. Expoente do bolsonarismo radical, Kicis é investigada no inquérito das manifestações antidemocráticas – um de seus assessores mantinha conversas com extremistas que atacaram o Supremo Tribunal Federal.
O brigadeiro tem todo o direito de votar em quem quiser. E tem ainda o direito de manter sua escolha em segredo, pois, mais do que um direito constitucional, esse deve ser um mandamento ético para o comandante de 75 mil homens. Além de servir de exemplo para seus subordinados, o brigadeiro é voz que deve ser escutada pela reserva. Quando revela suas preferências eleitorais – como sempre deixou claro em manifestações no Twitter antes de comandar a Força –, ele arrasta a política para dentro dos quartéis.
É possível que o brigadeiro tenha sido vítima de uma indiscrição da deputada, que uma conversa reservada tenha sido tornada pública pela parlamentar de forma inadvertida. Coisas de internet. Mas ela é neta do general Samuel Kicis, um combatente da 2ª Guerra Mundial, que lutou em Monte Castelo. A etiqueta militar, portanto, não lhe deve ser estranha. A revelação feita pelo repórter Felipe Frazão, no Estadão, joga mais lenha na fogueira dos que apostam na anarquia militar.
Não é apenas a FAB que é deixada desprotegida diante da invasão bolsonarista; é a própria defesa nacional que se vê prejudicada. Esta não se faz sem união. E esse é o tipo de coisa impossível de se obter com uma força partidária, parcial e sem isenção. Por que envolver o Exército na crise?, perguntou no domingo, em artigo no Estadão, o general Santos Cruz. Será preciso um brigadeiro escrever outro artigo: Por que envolver a FAB na crise? Um Gripen estilhaça as vidraças da democracia cada vez que indiscrições como essa ocorrem. E se Bolsonaro for derrotado em 2022? E se não houver voto impresso?
Oficiais generais estavam contrariados com o espetáculo oferecido pelo General-de-Divisão Eduardo Pazuello, ao subir no palanque do presidente Jair Bolsonaro. Como ficariam se os palanques passarem para dentro dos quartéis, com oficiais e sargentos interagindo em redes sociais com políticos de todos os matizes? Se um militar quer fazer política, basta deixar a Força e se filiar a um partido. O que não se pode é reviver o tempo em que a FAB era dividida entre "gregórios" e "golpistas".
Enquanto o brigadeiro Baptista Jr faz confidências à deputada, há quem se lembre na FAB ainda da história do brigadeiro José Rebelo Meira de Vasconcelos. Seria banal dizer: "Ele foi um herói". Frase tola e vazia em um mundo que não se deixa explicar por meio de mitos. Simples demais para descrever a vida de um homem como a do Meira (Major-Brigadeiro José Rebelo Meira de Vasconcelos).
Noventa e três missões de combate na Segunda Guerra Mundial e todo tipo de condecoração; o pioneirismo na aviação de caça, o carisma e o olhar que revirava pensamentos e memórias; enfim, um homem que falava como se voasse diante do interlocutor.
Não só: Meira tinha a convicção de que a política não devia entrar na caserna. Em um longo depoimento gravado dado ao Estadão em 2012, um ano antes de sua morte, o major-brigadeiro que recebeu a Distinguished Flying Cross (EUA), a Air Medal com quatro palmas (EUA) e a Croix de Guerre com Palma (França) disse: "Eu acho que devia ser lei: militar não pode ser político, porque não se coaduna; você jura uma coisa e aí você faz outra?
De volta da Itália, Meira se tornou um dos quatro primeiros pilotos brasileiros a voar em um jato, nos Estados Unidos. Como capitão, serviu no transporte aéreo, setor sob o comando do brigadeiro Eduardo Gomes, que saíra candidato à Presidência em 1950 pela UDN e perdeu para Getúlio Vargas. Meira conta o que aconteceu no Ministério da Aeronáutica. "Um sábado de manhã, quando eu estava na casa do meu sogro, em Copacabana, no Rio, o telefone tocou. Era o (brigadeiro) Nero Moura: ‘Amanhã às duas horas da tarde, venha fardado de branco e de espada para minha posse no ministério'."
O jovem piloto de caça se apresentou ao ministro. Fora escolhido para ser ajudante de ordens do homem que o comandara nos céus da Itália. "Eu nem sabia o que era ser ajudante de ordem. Por causa da parte política toda com ele (Nero Moura), todo mundo foi embora. Não ficou um oficial no gabinete para passar as funções. Você acredita nisso? Numa vida de militar, você acredita nisso? E eu, ignorante de pai e mãe, não tinha ninguém para me dizer, você faz isso."
O major-brigadeiro Meira continua: "A política estava muito forte naquela época, e é uma pena, pois ela atingiu a Força Aérea mais do que o Exército, por causa do Nordeste, do velho Eduardo (Gomes). Ficou um negócio triste, companheiros não falavam uns com os outros. Uma imbecilidade brutal. Por isso, eu acho que devia ser lei: militar não pode ser político.
Ficou um ambiente muito difícil. Aí encerrou minha vida de caçador". Meira amava a caça, a Base Aérea de Santa Cruz, as comemorações do Dia 22 de Abril. Foi um grande militar. Mais do que de Whiting, o Brasil precisa é de comandantes que respeitem a memória do major-brigadeiro Meira.