Paul Adams | BBC News
Um trecho dos documentos discute as possibilidades de reação russa à passagem de um navio de guerra britânico pelas águas ucranianas da costa da Crimeia, na última quarta (23).
Capa de um dos documentos alertava para o caráter altamente sigiloso do conteúdo |
Outros grupo de papéis encontrados no ponto de ônibus detalham planos para a possível presença militar britânica no Afeganistão, depois que a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) liderada pelos Estados Unidos chegar ao fim.
O governo britânico disse que abriu uma investigação sobre o caso. Um porta-voz do Ministério da Defesa falou que um funcionário reportou a perda de documentos sensíveis e acrescentou: "Seria inapropriado fazer mais comentários sobre o assunto."
Os documentos, que somam quase 50 páginas, foram encontrados molhados pela chuva, atrás de um ponto de ônibus em Kent na terça (22/06) de manhã. Uma pessoa, que pediu para ter a identidade preservada, contatou a BBC quando percebeu a natureza sensível do conteúdo.
A BBC acredita que os documentos, que incluem emails e apresentações de PowerPoint, foram produzidos por um funcionário do alto escalão do Ministério da Defesa.
Detalhes sobre missão de destroyer na Crimeia
Os documentos relacionados ao HMS Defender, o destroyer britânico que passou nesta semana pela costa da Crimeia, mostram que o Ministério da Defesa do Reino Unido aguardava uma reação agressiva por parte da Rússia, que vive conflito territorial com a Ucrânia naquela região.
Um trecho do documento apresenta as rotas possíveis de passagem do navio britânico pela costa da Crimeia |
Nos papéis, a missão da marinha do Reino Unido é descrita como: "inocente passagem por águas territoriais ucranianas", com armas cobertas e helicóptero estacionado no hangar. Mas trechos apontam que o governo britânico aguardava uma forte reação dos russos à presença da embarcação perto da costa da Crimeia.
De fato, na quarta (23/06), mais de 20 aeronaves russas e dois navios da guarda costeira seguiram o destroyer britânico por 19 km além da costa da Crimeia.
O ministro da Defesa russo disse que um navio de patrulha disparou tiros de alerta e um jato jogou bombas no caminho do navio de guerra britânico, mas o governo do Reino Unido negou essas informações, dizendo que não houve tiros de aviso.
A missão, chamada "Op Ditroite", foi tema de discussões de alta prioridade na segunda (21), conforme mostram os documentos, com funcionários especulando sobre qual seria a reação da Rússia se o HMS Defender navegasse perto da costa da Crimeia.
"O que sabemos sobre a possível 'festa de boas vindas'?", perguntou um oficial. "Com a transição de atividades de engajamento de defesa para atividades operacionais, é altamente provável que interações com a RFN (marinha russa) e a VKS (força aérea russa) sejam mais frequentes e assertivas", alertava uma apresentação que consta dos documentos encontrados no ponto de ônibus.
Uma série de slides mostra ainda as opções de rota do navio de guerra pela costa da Crimeia. Uma delas é descrita como "de trânsito seguro e profissional direto de Odessa a Batumi", incluindo uma passagem breve por uma área de "Esquema de Separação de Tráfego" (TSS), próximo à ponta do sudoeste da Crimeia.
A rota, conclui um dos slides, garantiria "oportunidade de engajar com o governo ucraniano... no que o Reino Unido reconhece como águas territoriais ucranianas."
As respostas esperadas da Rússia
Três potenciais respostas da Rússia foram descritas no documento, de "segura e profissional" a "nem segura nem profissional".
Na caso, a Rússia resolveu reagir agressivamente, com alertas por rádio, navios da guarda costeira se aproximando a um raio de 100 metros e sinais de alerta emitidos por aviões de guerra.
Uma rota alternativa, considerada pelo governo britânico, manteria o HMS Defender distante de águas cuja territorialidade é contestada. Isso evitaria o confronto, diz a apresentação, mas haveria o risco de a Rússia encarar a missão como evidência de que "o Reino Unido está assustado/fugindo", permitindo que a Rússia argumente que os britânicos reconheceram tardiamente o direito de Moscou sobre as águas da Crimeia.
"Como o público deve esperar, o Ministério da Defesa planeja suas ações cuidadosamente", disse um porta-voz do Ministério da Defesa.
"Como questão de rotina, isso inclui analisar todos os fatores potenciais que possam afetar decisões operacionais."
Em suma, os documentos revelam que a passagem do destroyer britânico por uma zona próxima à Crimeia foi uma decisão calculada pelo governo britânico. Tratava-se de uma demonstração de apoio à Ucrânia, apesar dos riscos envolvidos.
Então, o navio de guerra foi usado como instrumento diplomático?
Certamente a missão envolveu o uso de uma embarcação militar para atingir metas diplomáticas. Mas o objetivo primário não era "cutucar o urso russo".
Era uma questão de liberdade de navegação e um claro apoio à soberania da Ucrânia, após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.
Informações sensíveis sobre presença no Afeganistão
A maior parte dos documentos é classificada como "oficialmente sensível", um nível relativamente baixo de sigilo.
Mas um dos documento estava marcado como "Secret UK Eyes Only", algo que na tradução em português significa "Para olhos secretos do Reino Unido apenas".
Ele inclui recomendações altamente sensíveis sobre a possível presença militar do Reino Unido no Afeganistão, depois que a atual missão da Otan chegar ao fim.
No início do ano, o presidente americano, Joe Biden, decidiu retirar tropas americanas do país, portanto, a operação começa a perder força.
O documento discute um pedido dos EUA por apoio britânico em várias áreas específicas e aborda se alguma força especial do Reino Unido vai permanecer no Afeganistão uma vez que a retirada das tropas americanas for concluída.
Reportagens publicadas na imprensa já haviam indicado que o Reino Unido está considerando manter tropas no país. Devido ao caráter sensível do documento, a BBC decidiu não divulgar detalhes que possam colocar em perigo as forças de segurança britânicas no Afeganistão.
Mas diante de notícias de que a situação está se agravando no país, isso acende diversos alertas.
"Qualquer pegada do Reino Unido no Afeganistão que persista... é considerada vulnerável como alvo de uma complexa rede de atores", diz o documento, destacando que "a opção de retirar totalmente (as tropas) continua".
O Afeganistão, afirma, já está ficando mais perigoso com a redução da presença da Otan. Nenhum britânico foi morto no Afeganistão desde que foi assinado um acordo entre os Estados Unidos e o Talibã em fevereiro de 2020, diz o documento, "mas isso dificilmente permanecerá como status quo".
Dificilmente tenha havido no passado uma coletânea de documentos sigilosos perdidos abrangendo tantos tópicos importantes.
Essa é uma grande fonte de embaraço para o Ministério da Defesa do Reino Unido, que atualmente está conduzindo uma investigação sobre como os papéis apareceram no chão, atrás de um ponto de ônibus, na chuva, nas primeiras horas da manhã de terça.