Felipe Corazza | BBC News Brasil em São Paulo
Para o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, a decisão do Exército, anunciada na quinta-feira (03/05), de não punir o general da ativa Eduardo Pazuello por participação em ato político ao lado do presidente da República vai fazer crescer uma crise já instalada: o cisma entre o comando das tropas e aqueles que Carvalho classifica como "generais do presidente", em referência aos que ocupam cargos no governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Pazuello no ato de apoio a Bolsonaro; Exército decidiu não puni-lo | Reuters |
O Regimento Disciplinar do Exército proíbe que militares da ativa participem publicamente de atos de cunho político-partidário.
"Sabe-se que os componentes do alto comando do Exército eram favoráveis a algum tipo de punição. O comandante os teria convencido a não punir. Imagino que com isso tenha perdido autoridade", diz, mencionando o atual comandante do Exército, general Paulo Sérgio.
Autor de obras diversas sobre o tema - entre elas, o clássico Forças Armadas e Política no Brasil -, Carvalho entende que a falta de punição a Pazuello é grave, apesar de não ser inédita.
Como precedente, ele recorda o caso do general Jurandir Mamede. Em 1955, ainda coronel, Mamede se pronunciou politicamente a favor de um golpe militar em discurso durante o funeral de um oficial superior. Ele reagia à eleição de Juscelino Kubitschek para a Presidência e João Goulart como seu vice, semanas antes.
Apesar do desejo de puni-lo ter sido manifestado por comandantes, a decisão acabou não sendo tomada e Mamede se livrou.
A seguir, a entrevista concedida pelo historiador, por e-mail, à BBC News Brasil:
BBC News Brasil - Como o sr. caracterizaria a época recente do Brasil em termos da relação entre a caserna e a política?
José Murilo de Carvalho - Época de tensão, dúvidas e medo.
BBC News Brasil - Como o sr. reagiu ao saber que o general Eduardo Pazuello não receberia qualquer punição por ter participado de um ato político mesmo sendo um militar da ativa?
Carvalho - Desapontamento e receio. O primeiro por ter acreditado na existência de generais de caráter capazes de resistir a pressões descabidas, mesmo que pelo pedido de demissão, como foi o caso do general (Edson) Pujol e de seus colegas da Marinha e da Aeronáutica. O segundo pelas consequências que poderão advir para a manutenção da disciplina no Exército.
BBC News Brasil - O vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão, havia declarado ele próprio que Pazuello deveria ser punido, sob risco de o contrário alimentar uma 'anarquia'. Estamos, então, entrando no território da anarquia entre os militares?
Carvalho - É curioso que o general Mourão tenha sido punido duas vezes por ter feito declarações políticas. Prefiro a posição atual dele, ironicamente adotada depois de se ter feito político.
BBC News Brasil - A decisão de não punir Pazuello vem sendo tratada por analistas ou até por outros militares como um ponto inédito no histórico das Forças Armadas. Há precedente?
Carvalho - Há o caso do coronel Jurandir Mamede, em 1955. Mas, antes de 1964, e até mesmo alguns anos depois, a indisciplina e a conspiração eram rotina nos quartéis. Uma das medidas dos golpistas de 64 foi punir e expurgar os inimigos e estabelecer um pensamento único nas Forças.
BBC News Brasil - A gestão Bolsonaro é marcada, desde o início, por abrigar militares em cargos diversos. Com essa situação do general Pazuello, com o sr. avalia que deve ficar a relação entre o comando da ativa e os militares que ainda estão no governo?
Carvalho - Já há tensão entre os generais do presidente e os generais da tropa, e ela deverá aumentar. Pelas notícias divulgadas, sabe-se que os componentes do alto comando do Exército eram favoráveis a algum tipo de punição. O comandante os teria convencido a não punir. Imagino que com isso tenha perdido autoridade.
BBC News Brasil - Analistas diversos apontaram que o presidente pode estar tentando criar uma situação de tensão para explorá-la em uma tentativa de levante com vistas à eleição de 2022. O sr. crê que isso seja possível ou viável?
Carvalho - Acho difícil. O perigo maior é que ele consiga mobilizar as polícias militares.
BBC News Brasil - O Brasil de 1964 era um país muito diferente do atual em termos econômicos e nas relações internacionais. Uma suposta "aventura militar" hoje teria consequências distintas?
Carvalho - Em 64, dominava a Guerra Fria. Os golpistas tiveram forte apoio dos Estados Unidos. Hoje, isso não seria possível. No máximo, haveria alguns silêncios. O país se tornaria ainda mais pária.
BBC News Brasil - Desde a redemocratização, os militares têm repetido o discurso da profissionalização para se afastar de questões políticas e recuperar o prestígio. Em qual grau isso fica comprometido após o atual governo?
Carvalho - Profissionalização significa dedicação total às tarefas militares. Ela avançou bastante nas últimas décadas na Marinha e na Aeronáutica. No Exército, avançou pouco e é ele que tem, por causa de sua presença no território nacional, capacidade de controlar o país. O direito de exercer um papel político está embutido nas convicções do Exército desde 1889.