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Por mais de dois dias, navios de guerra do Reino Unido e da França foram posicionados nas águas da ilha de Jersey, uma pequena dependência britânica a 22 quilômetros da Normandia.
Jersey tem população de 100 mil habitantes © AFP |
A ilha, cuja posse em outros séculos foi objeto de invasões, guerras e disputas, tornou-se agora o principal foco das tensões pós-Brexit entre Londres e a União Europeia (UE).
A nova crise começou no início da semana passada, quando uma frota de mais de 60 navios de pesca franceses navegou com destino a um porto da capital da ilha, Saint Helier.
Foi assim que os pescadores iniciaram um protesto sobre as novas exigências e limitações para seu comércio que entraram em vigor neste mês, em decorrência da saída dos britânicos do bloco europeu.
Sob um acordo com a UE, os donos de barcos franceses devem comprovar um histórico de pesca na área para receber uma licença a fim de operar nas águas de Jersey, mas eles dizem que outras exigências foram adicionadas sem aviso prévio e agora afetam seu trabalho.
O governo francês questionou a medida britânica e saiu em defesa de seus cidadãos.
Logo após o início do protesto, a França ameaçou cortar a eletricidade da ilha, que vem de território francês, levando a um dos maiores confrontos diplomáticos dos últimos tempos entre Londres e Paris.
A tensão chegou a tal ponto que dois navios da Marinha Real britânica foram enviados para a área, ao que a França também respondeu com o envio de dois outros navios de patrulha.
Finalmente, na noite de quinta-feira (6/5), após várias negociações, os barcos pesqueiros franceses deixaram o porto de Jersey, encerrando assim o confronto com Londres.
Pelo menos, "por enquanto".
"Estamos satisfeitos que os barcos de pesca franceses tenham deixado os arredores de Jersey. Como a situação está resolvida por enquanto, os navios de patrulha marítima da Marinha Real vão se preparar para retornar ao porto no Reino Unido", anunciou o governo britânico.
No entanto, especialistas consultados pela BBC garantem que a situação está longe de ser resolvida, visto que suas causas (as relações econômicas e políticas entre os membros da UE e do Reino Unido na era pós-Brexit) continuam a ser uma fonte de tensão entre as partes.
E Jersey, localizada entre a França e o Reino Unido, pode continuar a ser um gatilho para novos confrontos.
Mas por que esta ilha é tão relevante para Londres?
Uma ilha peculiar
Jersey é um lugar geográfico, histórico e politicamente peculiar: é a maior das Ilhas do Canal da Mancha e está tão perto da França que culturalmente é considerada mais próxima deste país do que do Reino Unido.
No entanto, é politicamente dependente de Londres: suas relações exteriores, defesa e "boa governança" são de responsabilidade do Reino Unido, embora não seja oficialmente parte dele.
De fato, a mistura entre as duas culturas é uma constante por lá.
A maioria de seus habitantes nativos fala inglês e uma versão peculiar do francês (um subdialeto do normando); dirige-se à esquerda, como no Reino Unido, mas se cozinham pratos típicos da Normandia; o críquete inglês é um esporte popular; mas muitos dos nomes de cidades e vilarejos são em francês. A moeda oficial é a britânica, a libra esterlina.
A ilha, com pouco mais de 100 mil habitantes, nunca fez parte da União Europeia ou do Espaço Econômico Europeu e é considerada uma monarquia constitucional e democracia parlamentar autônoma, com poder de autodeterminação e sistemas financeiros, jurídicos e judiciários próprios.
No entanto, sua defesa é de responsabilidade constitucional do Reino Unido. A ilha também não tem poder legal para nomear diplomatas e a Rainha Elizabeth 2ª é considerada sua monarca (e chefe de Estado).
Esse estranho status político tem a ver com sua história e remonta aos primórdios do primeiro milênio depois de Cristo.
Uma história entre duas nações
Por volta do ano 996, a ilha, inicialmente um enclave romano, foi anexada ao Ducado da Normandia, mas seu status e destino mudaram devido a um dos eventos que mais impactaram na história da Europa: a Batalha de Hastings.
Em outubro de 1066, o duque William da Normandia, conhecido como William, o Conquistador, invadiu a Inglaterra e derrotou o rei Harold 2º, espalhando o poder normando para o norte do Canal da Mancha.
A partir de então, Jersey e Inglaterra foram unidas sob a mesma monarquia.
Após a divisão do Ducado da Normandia em 1204, as ilhas ficaram sob a posse dos ingleses, e em sucessivos episódios na história a França tentou sem sucesso recuperá-las.
Durante a Idade Média, de fato, a Inglaterra perdeu muitas de suas possessões feudais no continente europeu, mas conseguiu manter suas ilhas no Canal da Mancha.
O Reino Unido, entretanto, perdeu sua posse por alguns anos: entre 1º de julho de 1940 e 9 de maio de 1945, a ilha foi ocupada pelos nazistas, que chegaram a criar campos de concentração para onde transferiam prisioneiros soviéticos a fim de realizar trabalhos forçados.
Na verdade, a ilha passou por uma fome intensa após os desembarques da Normandia, depois que os Aliados assumiram o controle da região e cortaram o abastecimento da França.
Isso porque a economia e a vida de Jersey têm estado estrategicamente ligadas à França, de onde não só obtém sua eletricidade por cabos submarinos, mas com quem mantêm seu maior intercâmbio econômico.
A ilha dos escândalos
Apesar de seu pequeno tamanho e diminuta população, Jersey teve um impacto notável na vida política, econômica e midiática, não apenas da Europa.
Da pequena ilha, surgiu uma raça de vacas (jersey), comercializadas em todo o mundo por seu leite rico em gordura, uma batata (jersey royal), que também conquistou o paladar mundial, e um tipo de malha que, produzida por sua indústria têxtil, se tornou tão famosa a ponto de batizar uma peça de roupa (em alguns países de língua espanhola, a vestimenta ainda é chamada de jersey; em outros, suéter).
Sua importância estratégica para a Inglaterra foi inclusive lembrada na conquista da América do Norte: em sua homenagem, os ingleses batizaram uma de suas 13 colônias: Nova Jersey.
A ilha também ficou conhecida por outros motivos menos curiosos.
Há uma década, estava nas manchetes de quase todo o mundo quando foi descoberto o chamado caso Haut de la Garenne, uma série de casos de abuso e pedofilia em um orfanato entre 1960 e 1980.
A economia da ilha e o seu sistema financeiro também lhe garantiu má reputação durante décadas: é considerada um dos principais paraísos fiscais da Europa.
A ONG Tax Justice Network, que rastreia paraísos fiscais corporativos em todo o mundo, classificou Jersey em sua lista de 2019 como uma das mais "agressivas" do mundo.
O governo local negou por anos que a ilha seja um paraíso fiscal e garante que seus negócios são ali conduzidos "totalmente de acordo" com os padrões estabelecidos por "órgãos globais independentes".