Igor Gielow | Folha de S.Paulo
No primeiro grande efeito da restrição orçamentária sobre um programa estratégico militar no governo Jair Bolsonaro, a FAB (Força Aérea Brasileira) anunciou que vai reduzir a encomenda de seu novo cargueiro militar, o KC-390 Millennium, fabricado pela Embraer.
No primeiro grande efeito da restrição orçamentária sobre um programa estratégico militar no governo Jair Bolsonaro, a FAB (Força Aérea Brasileira) anunciou que vai reduzir a encomenda de seu novo cargueiro militar, o KC-390 Millennium, fabricado pela Embraer.
O cargueiro KC-390, fabricado pela Embraer, durante um voo de teste no interior de São Paulo - Divulgação/Embraer |
Em contrato assinado em 2014 por R$ 7,2 bilhões (R$ 10,44 bilhões hoje, em valores corrigidos pela inflação), a Força se comprometia a comprar 28 aviões. Agora, quer reduzir isso a talvez menos de 20 unidades.
Alegando restrição fiscal devido à crise econômica decorrente da pandemia, a FAB afirmou em nota que "os recursos destinados ao setor de defesa vêm sofrendo restrições que causam limitações diretas nos projetos estratégicos das Forças Armadas".
"O número previsto de 28 aeronaves do atual contrato, o qual, neste momento, tem se mostrado superior à realidade orçamentária da Força, tanto para aquisição, quanto ao suporte logístico ao longo do tempo", afirmou a Força, elogiando na sequência o desempenho dos 4 aviões entregues desde 2019.
A FAB propõe uma repactuação para que sejam entregues 2 aviões por ano. Se isso passar a valer já neste ano e o prazo inicial para o fim da encomenda, em 2027, for mantido, a frota pode cair até para 16 aviões.
Isso não está certo ainda, e será objeto de negociações. "A Embraer informa estar com todas as suas obrigações contratuais em dia, bem como reitera sua capacidade de cumprimento de obrigações futuras", afirmou a fabricante em nota.
A notícia é péssima para a Embraer, que conta com o robusto contrato inicial no Brasil para alavancar as promissoras vendas do KC-390 e sua versão sem capacidade de reabastecimento aéreo, o C-390, no mercado internacional.
O avião já foi adotado por dois países da Otan, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos, com 5 unidades vendidas a Portugal e 2, à Hungria.
O grupo opera majoritariamente o C-130, da Lockheed Martin. A empresa americana fabrica desde os anos 1950 o avião, um cargueiro quadrimotor turboélice que leva até 19 toneladas. O KC-390 é bastante mais avançado, um bimotor a jato com capacidade de transportar até 26 toneladas.
Sua maior eficiência sempre foi um dos principais pontos de venda da Embraer. O avião é considerado o mais promissor produto militar brasileiro desde o bem-sucedido turboélice de treinamento e ataque leve Super Tucano.
O momento para o corte pegou especialistas no mercado de surpresa. Afinal de contas, até aqui os programas estratégicos vinham sendo preservados, e o setor aéreo é um dos mais atingidos pela pandemia, com queda mundial de demanda que afetou os negócios civis da Embraer.
Além disso, a fabricante brasileira teve de lidar com o fim de sua associação com a americana Boeing, que iria comprar o controle de sua linha de aviação comercial, mas desistiu no começo do ano passado.
Não é a primeira vez que o KC-390 sofre com a inconstância do gasto militar brasileiro. Com a recessão de 2015-16, o programa sofreu atrasos — a primeira aeronave foi entregue em 2019, quando o plano original previa já cinco aviões com a FAB.
"Cabe ressaltar que em ocasiões passadas de restrições orçamentárias impostas pela União aos contratos de desenvolvimento e produção do KC-390 Millennium, a Embraer sempre procurou adequar seus recursos com vistas à continuidade deste projeto de grande relevância nacional e internacional, prezando pela parceria com a FAB e pelo desenvolvimento da indústria nacional", disse a empresa paulista.
Como é usual no mercado militar em todo mundo, a encomenda governamental inicial é vital para qualquer novo produto.
A FAB colocou, desde 2008, cerca de R$ 5 bilhões (valor sem correção ao longo dos anos) no desenvolvimento do KC-390, que serão reembolsados por pagamento de 3,2% de royalties nas exportações.
Como a Folha mostrou no começo do mês, o Ministério da Defesa voltou a seu padrão de gasto usual, ancorado na despesa de pessoal perto de 80% do seu orçamento, em 2020.
No primeiro ano da gestão Bolsonaro, manobras fiscais permitiram um incremento no nível de investimento a 14,5% do total do gasto, valor que caiu a 7,4% no ano passado. O Ministério da Defesa tentou, sem sucesso, ampliar o orçamento militar de 1,5% do Produto Interno Bruto para 2%.
Até aqui, programas como o do KC-390 estavam relativamente a salvo: com R$ 720 milhões pagos em 2020, o cargueiro foi o segundo maior recebedor de recursos de defesa no ano.
Com o bloqueio de R$ 1,4 bilhão do total do gasto militar neste ano, ainda sendo avaliado por programa, a situação ficou complexa.
Na sua nota, divulgada na noite de quarta (26), a Força ressalta que manterá a Embraer como sua parceira prioritária, inclusive em novos programas, como o de uma aeronave não-tripulada.
A fabricante paulista também é sócia da fabricação no novo caça brasileiro, o sueco Saab Gripen, que terá parte de seus 36 aviões encomendados feita na unidade da Embraer de Gavião Peixoto.