Afonso Benites | El País
O Palácio do Planalto dedicou seu tempo a amplificar a crise política-militar provocada pelo próprio presidente, com a demissão do ministro da Defesa, seguida da saída em protesto dos três comandantes das Forças Armadas, Marinha, Exército e Aeronáutica, algo inédito desde a redemocratização. Acuado pelo Congresso e de olho em sua base mais radical, o objetivo do presidente, ao longo de todo dia, foi enviar a mensagem de que estava enquadrando as forças militares, e não sendo um alvo de protesto do alto escalão castrense.
Bolsonaro com Fernando Azevedo ao fundo no dia 8 de maio de 2020 © Ueslei Marcelino (Reuters) |
As especulações sobre um possível autogolpe, uma ruptura institucional ou a decretação de estado de sítio, ou de defesa, era tamanho, que precisou o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, vir a público para arrefecer os ânimos. “As Forças Armadas vão se pautar pela legalidade, sempre”, disse ao portal G1. Mourão apenas reforçou o que prega a Constituição Federal, mas que parece ser necessário ser dito a cada movimento radical feito pelo chefe do Executivo.
Foi nessa toada que o bolsonarismo insistiu em quatro estratégias diversionistas: 1. difundiu a informação de que Bolsonaro foi severo e demitiu os três comandantes militares, enquanto que, na realidade, foram eles quem entregaram seus cargos por discordarem da demissão do então ministro da defesa, Fernando Azevedo e Silva da Defesa; 2. costurou estratégias para furar a fila de promoção no Exército e encontrar um novo comandante; 3. usou um de seus fiéis aliados na Câmara dos Deputados, o major Vitor Hugo (PSL-GO), para tentar colocar em votação um projeto de lei que ampliasse os poderes do presidente durante a pandemia e pudesse impedir decretos estaduais de lockdowns. 4. Determinou, como tem feito desde que chegou ao poder, que seu novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, assinasse um expediente chamado “ordem do dia” a ser lido nos quartéis de todo o país nesta quarta-feira exaltando positivamente o golpe militar de 1964 ―o texto é sempre celebrado pela base do presidente, que defende abertamente a volta de um regime militar, em torno de 10% da população nas pesquisas.
Logo pela manhã, o ministro-general Braga Netto, comunicou aos comandantes das Forças, o general Edson Pujol (Exército), o almirante Ilques Barbosa (Marinha) e o tenente-brigadeiro do Ar Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica) que eles estavam demitidos por ordem do comandante-em-chefe, o presidente Bolsonaro. O trio já estava disposto a entregar os cargos em apoio ao ex-ministro Fernando Azevedo e Silva, que saiu enviando recado de que sempre preservadou “as Forças Armadas como instituições de Estado”, deixando antever uma pressão do Planalto do contrário. Ainda assim, a reunião entre eles foi tensa. Ilques Barbosa, que tem como marca a serenidade, exaltou-se reclamou que as mudanças interferem na imagem das forças e que Bolsonaro estava levando a política para dentro dos quartéis. Braga Netto, conhecido por ser pouco afeito a gentilezas, chegou a bater na mesa e gritou com os demais presentes na reunião, conforme dois relatos feitos à reportagem.
De pronto, o novo ministro mostra uma de suas principais características. “No meio militar há os que lideram, e os que mandam. O general Fernando era um líder. Não se pode dizer o mesmo do general Braga Netto”, afirmou o cientista político, Alexandre Fuccille, professor da Universidade Estadual Paulista e pesquisador na área de Defesa.
Essa movimentação nos comandos obrigará Bolsonaro a alterar a escala de promoções no Exército. Geralmente, é promovido comandante o oficial mais antigo. Mas a intenção do presidente é promover o quinto general com mais tempo de casa, o atual comandante da região Nordeste, Marco Antônio Freire Gomes. Dessa maneira, entraria compulsoriamente na reserva remunerada os quatro generais mais antigos que Freire Gomes. Todos são muito ligados a Pujol, com quem Bolsonaro já estava rompido, ou ocuparam cargos de relevância em outros governos.
Assim, a escolha dos novos comandantes devem ser marcadas por suas posturas políticas do passado também, segundo um oficial relatou à reportagem. “O estrago que o Bolsonaro está fazendo com a hiperpolitização das Forças Armadas é tremendo. Elas deveriam deixar a política fora dos quartéis, mas não é isso que ocorre”, avaliou o pesquisador Fuccille.
Há a possibilidade de o novo comandante ser anunciado nesta quarta-feira, dia 31 de março, quando mais dois generais serão promovidos, dentro do esperado pela carreira, e os quartéis comemorarão o golpe militar. “As Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”, diz trecho da ordem do dia assinada por Braga Netto em uma mais tentativa de reescrever a história brasileira negando que tenha havido um rompimento da ordem institucional. Por fim, o ministro ainda anota: “O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. A intenção do Governo de celebrar o golpe é tão marcada que o Planalto fez a Advocacia-Geral da União entrar na Justiça para garantir o direito dos militares e outras instituições de celebrar a chegada de 21 anos de ditadura, algo inimaginável nos vizinhos latino-americanos que também estiveram sob regimes militares.
Câmara e PMs
Enquanto isso, do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Congresso Nacional, o major Vitor Hugo, líder do PSL na Câmara, tentou, em vão, que fosse colocado em votação um projeto de lei que trata do “estado de mobilização nacional”. A medida era mais uma tentativa de agitação do mundo político aventando a possibilidade de dar ao presidente durante a pandemia os mesmos poderes que ele teria no país caso houvesse um ataque bélico por uma nação estrangeira. É uma espécie de versão light do estado de defesa, algo que precede o estado de sítio, quando as liberdades individuais e políticas são restritas, com um acréscimo estratégico: colocaria sob o comando do presidente as polícias militares estaduais, agentes armados e sob comando formal dos governadores que bolsonaristas querem cooptar. Por isso, a manobra foi vista por opositores e pela maioria dos líderes partidários como uma tentativa de golpe de Bolsonaro. Não foi sequer levado à votação do plenário.
O texto apresentado por Vitor Hugo estabelece que, nesse caso, o chefe do Executivo poderá tomar medidas que incluem a intervenção nos fatores de produção públicos e privados; a requisição e a ocupação de bens e serviços; e a convocação de civis e militares para ações determinadas pelo Governo Federal ―além de colocar sob o comando do presidente as polícias militares estaduais, um grupo cultivado pelos bolsonaristas. “Essa lei dá margem para que o presidente possa avançar em qualquer processo de golpe de Estado”, afirmou o líder do Cidadania, Alex Manente.
Além de barrar mais essa tentativa autoritária, tanto a Câmara quanto o Senado votarão requerimentos de oitivas do novo ministro Braga Netto, de seu antecessor, Fernando Azevedo, e dos três comandantes militares demitidos nesta terça-feira. Já há pedidos tramitando nas duas Casas. O mais avançado, que deve ser votado nesta quarta-feira, é um que está na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara e trata apenas do novo ministro.
Na noite desta terça-feira, já frustrada a investida no Congresso, Bolsonaro seguiu enviando recados a sua base e pregando contra o isolamento social para conter a pandemia. Disse estar de mãos atadas para reverter das restrições. “Eu jogo dentro da Constituição. Há algum tempo algumas autoridades não estão jogando nos limites da Constituição”, disse a um canal bolsonarista no YouTube.