Carla Jiménez | El País
“A selva nos une”, tuitou o vice-presidente Hamilton Mourão, neste dia 5, quando se celebra o dia da Amazônia no Brasil. Mas suas palavras não encontraram eco na realidade brasileira num momento que um campo de batalha se abre contra a gestão do Governo na região. Desde maio, o mesmo Mourão conduz as operações Verde Brasil na área, com apoio das Forças Armadas, para coibir queimadas e delitos ambientais em geral. Mas a legalidade da ação dos militares foi questionada na Suprema Corte pelo Partido Verde no dia 30 de agosto, diante do aumento do desmatamento na floresta amazônica, levantando ainda a desconfiança de que o Governo pode ter agentes que informam desmatadores sobre as operações de fiscalização em curso. O pedido pede a suspensão dos atos normativos do Exército, o que na prática é paralisar a operação Verde Brasil.
O fogo consumiu a floresta nos arredores de Novo Progresso, no Pará, em 23 de agosto | ANDRE PENNER / AP |
Na quinta-feira, 3, a ministra do Supremo Carmen Lúcia solicitou “com urgência e prioridade, informações ao presidente da República e ao ministro da Defesa sobre os dispositivos legais questionados, a serem prestadas no prazo máximo de cinco dias”. Na sequência, serão pedidas manifestação da Advocacia Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Coube ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, expressar sua irritação e reavivar atritos públicos de membros do Governo com a Corte, ao escrever: “A ministra Carmen Lúcia, do STF, acolheu ação de um partido político e determinou que o presidente e o ministério expliquem o uso das Forças Armadas, na Amazônia. Perdão, cara Ministra, se a Sra conhecesse essa área, sabe qual seria sua pergunta: “O que seria da Amazônia sem as Forças Armadas?” O vice-presidente Mourão já havia se manifestado sobre o assunto nesta sexta, 4, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, dizendo que o pedido da ministra “é mais um uso político do STF”. O tuíte de Heleno veio neste sábado completar a provocação, e colocar as redes sociais no fla-flu de sempre, depois de uma aparente trégua do Governo Bolsonaro com os demais poderes.
O cabo de guerra sobre a Amazônia, um bioma de 4,2 milhões de quilômetros quadrados, ganha a cada dia novas camadas sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro. Com a crítica permanente no exterior sobre a condução da política ambiental – e a ameaça de reduzir investimentos no país por isso —, Bolsonaro colocou o vice-presidente a cargo da proteção da floresta, principalmente depois das queimadas em agosto de 2019, quando o Brasil virou alvo de críticas no mundo inteiro. Ali nasceu a primeira Operação Brasil, que ficou dois meses [agosto a setembro] na região para controlar focos de incêndios e delitos ambientais.
O desmatamento, porém, não cedeu em 2020, e em abril os alertas para queimadas e desmatamentos na Amazônia Legal cresceram 63,7%, o que levou o Governo a editar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que prevê o uso das Forças Armadas para proteger a floresta. Nasceu assim a Operação Verde Brasil 2, ao custo de 60 milhões de reais, que duraria, em princípio, dois meses. Embora ambientalistas tenham reconhecido o esforço do Governo de chegar antes de novas altas de queimadas no segundo semestre, o plano foi visto com desconfiança pelo custo alto previsto – maior que o orçamento anual do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), responsável pela fiscalização e redução do desmatamento até então — e pela falta de articulação conjunta.
Mourão reforça que a ação visa dar apoio aos órgãos de fiscalização, como o próprio Ibama e o Instituto Chico Mendes (ICM-Bio). “É apoio logístico e de segurança ao trabalho das duas instituições, que não têm pernas para cumprirem suas tarefas na Amazônia”, disse ele ao O Estado de S. Paulo. A posição do vice-presidente é vista com bons olhos por quem está em campo, mas os ruídos permanecem nesta que é uma área extremamente sensível para os brasileiros e para o mundo que combate o aquecimento global e depende de florestas, como a Amazônia, em pé. “Queremos e precisamos do trabalho com as outras Forças. Mas cada um tem que entrar com sua especialização. A especialização do Exército é logística, risco operacional. Nós temos prática em montar operações e ações contra infratores ambientais”, disse ao repórter Gil Alessi, sem se identificar, um fiscal que atua no instituto há mais de dez anos. Mourão ainda fez um mea culpa em sua entrevista ao dizer que o Governo errou ao sair da floresta em setembro ao final da operação Brasil 1. “Se tivéssemos permanecido no terreno desde o ano passado, teríamos números melhores para apresentar. Essa é a mea culpa que faço”, disse. Entre maio e agosto o número de queimadas foi praticamente o mesmo que o de 2019, nesse mesmo período, ainda que em agosto tenha havido uma redução de 5%. Mas este ano, as queimadas chegaram forte inclusive ao bioma do Pantanal, no centro oeste do país.
As convergências, porém, acabam se esvaindo com o Governo de um lado sob pressão com a imagem desgastada pelas dificuldades em concluir o trabalho, e ambientalistas de outro vendo-se ignorados. Na ação do PV na Corte, o partido menciona relatos de agentes de fiscalização que revelam falta de colaboração. “Criaram uma operação que concorre para o desmonte da política ambiental brasileira”, relata a arguição do PV, que menciona ainda uma ação do Ibama do dia 6 de agosto, vazada para os que seriam alvo de fiscalização. A Polícia Federal acompanhava há semanas uma operação ilegal de garimpo no Pará, mas foram proibidos a seguir a pedido de um militar. “Houve divulgação do áudio encaminhado para o grupo de WhatsApp denominado ’Garimpeiro não é bandido’, alertando sobre a presença dos agentes do Ibama naquele dia 6 de agosto na região. O autor do áudio foi identificado e confirmou que a informação foi repassada por funcionário do Governo Federal”, diz o recurso, citando reportagem divulgada no programa Fantástico.
O alerta no áudio, no caso, foi feito por Josias, um indígena urbanizado, favorável ao garimpo, que tem contato com “uma pessoa” no Governo, como ele mesmo admite na reportagem. São indígenas como ele que são mencionados por Mourão ou Bolsonaro quando o assunto é a Amazônia, e a construção de uma cadeia de atividade econômica na região. “A gente tem de entender as ansiedades da comunidade indígena. Eles não podem continuar segregados, afastados do século XXI. Precisam ter renda própria e não podem viver de esmola do Estado”, disse o vice-presidente. A leitura, porém, não leva em conta os diferentes estágios de integração dos indígenas num país com mais de 300 povos diferentes, incluindo isolados e outros que se negam a se aculturar, porque entendem a floresta como seu meio de vida, e de respeito aos seus ancestrais, que sobrevivem na mata desde antes do Brasil ser descoberto em 1500.