Por Ana Livia Esteves | Sputnik
Em 1942, o Brasil declara guerra contra a Alemanha e a Itália, entrando ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Mas, muito antes disso, a Marinha já estava em guerra.
Exercício de lançamento de bombas de profundidade, no navio caça-submarino Guaporé, em 1944 | Marinha do Brasil |
"Tivemos que preparar as nossas forças navais para defender a neutralidade do país desde o primeiro dia da guerra na Europa", contou o doutor em ciências políticas da UFSCAR, Ludolf Waldemann Júnior à Sputnik Brasil. "Na América do Sul, a guerra veio pelo mar."
O primeiro incidente de guerra registrado na nossa região foi ainda em 1939, quando embarcações britânicas e alemãs "trocaram tiros praticamente na frente de Montevidéu", contou Waldemann.
"O cruzador alemão Admiral Graf Spee atuava no Atlântico Sul, como corsário, e entrou em combate com um Grupo Tarefa Inglês em 13 de dezembro de 1939, no litoral do Uruguai", afirmou à Sputnik Brasil o capitão de mar e guerra Ronald dos Santos Santiago.
"O nosso comandante em chefe da esquadra, contra-almirante Mário de Oliveira Sampaio, já estava posicionado no litoral de Santa Catarina observando a evolução dos acontecimentos em dezembro de 1939", relembrou Santiago.
Confrontada com a necessidade de proteger a costa brasileira de eventuais consequências do conflito entre grandes potências europeias, a Marinha do Brasil estava mal equipada para cumprir a sua missão.
"A Marinha estava em uma situação extremamente precária naquele momento, quase todos os nossos navios eram de antes da Primeira Guerra Mundial e estavam em uma situação de conservação terrível", contou Waldemann.
"Em um primeiro momento, a Marinha coloca os navios que têm condições para navegar, mas fundamentalmente ela confia na neutralidade", explicou Waldemann.
Importância do Atlântico Sul
No entanto, sucessivos ataques alemães a navios brasileiros tornam a manutenção da neutralidade uma tarefa cada vez mais difícil.
Poster sobre a participação da Marinha do Brasil na Segunda Guerra Mundial faz alusão à guerra antissubmarino | Domínio público |
"Em fevereiro de 1942, houve o primeiro desaparecimento de navio mercante brasileiro no litoral dos EUA, com a perda de 54 pessoas. Estes eventos foram se intensificando, havendo o torpedeamento de dez navios mercantes de março a junho de 1942, com a perda de 80 vidas", lamentou Santiago.
"Os alemães vão progressivamente se aproximando do Atlântico Sul. O Brasil fornecia minerais estratégicos para os EUA, então atacar navios brasileiros era um modo de atacar a máquina de guerra norte-americana", explicou Waldemann.
Mas "o clímax que resultou na declaração de guerra do Brasil ao Eixo, em 31 de agosto de 1942, foi o ataque praticado pelo submarino alemão U-507, a 6 navios mercantes brasileiros, vitimando 607 pessoas em somente cinco dias", lembrou Santiago.
Nesse contexto, o Brasil entra definitivamente na guerra ao lado dos Aliados – EUA, Reino Unido e União Soviética – e passa a ser alvo constante de submarinos do Eixo, notadamente os alemães.
"Os maiores riscos da guerra no mar eram os ataques noturnos dos submarinos inimigos. A Itália operou no litoral brasileiro com dez submarinos [...] a Alemanha operou ativamente com 27 submarinos no Atlântico Sul", contou Santiago.
Durante a guerra naval, "marinhas de todo o mundo foram pegas de surpresa pelo foco antissubmarino dos combates navais", ressaltou Waldemann. "No Brasil, não havia treinamento para esse tipo de guerra."
"A missão da Marinha do Brasil na guerra era assegurar que os comboios de navios chegassem aos seus destinos" na região entre o Rio de Janeiro e a ilha de Trinidad, explicou Waldemann.
Por isso, "a vitória não era necessariamente afundar o submarino inimigo, mas assegurar que comboio passasse ileso. Era necessário localizar o submarino inimigo e lançar sobre ele bombas de profundidade", pontuou.
Nesse sentido "nós cumprimos a nossa missão. Tiveram ataques contra navios brasileiros, mas de modo geral, fomos muito bem-sucedidos", contou Waldemann.
"Foram 254 comboios regulares, ida e volta, escoltando o total de 3.164 navios de diversas nações, sendo que 99% dos navios atingiram o destino", disse Santiago. "Estas movimentações ainda permitiram o recolhimento de 654 náufragos e pelo menos 66 contatos com submarinos inimigos."
Além dos comboios, a "Marinha do Brasil participou da escolta dos navios de transporte norte-americanos no deslocamento dos 2º, 3º, 4º e 5º Escalões da Força Expedicionária Brasileira (FEB)", que lutou ao lado dos Aliados na Itália.
Cooperação com os EUA
Apesar de ser muito anterior à Segunda Guerra Mundial, a cooperação da Marinha do Brasil com a dos EUA se intensifica com a eclosão do conflito.
O navio caça-submarino Guaporé recebe óleo em alto mar, durante o comboio TJ29, durante a Segunda Guerra Mundial | Marinha do Brasil |
Antes mesmo de o Brasil entrar na guerra, "em janeiro de 1941, o Congresso norte-americano autoriza o executivo a ceder armamento às repúblicas americanas, transformando os EUA no chamado 'arsenal da democracia'", detalhou Santiago.
Nesse contexto, a "Marinha norte-americana transferiu para a Marinha do Brasil, [...] oito caças submarinos da classe G (280 toneladas); oito caças submarinos da classe J (100 toneladas) e oito contratorpedeiros de escolta da classe Bertioga (1240 toneladas)", disse Santiago.
Além disso, "cresce o intercâmbio profissional entre as marinhas, e muitos oficias brasileiros são enviados para treinar nas escolas navais dos EUA", contou Waldemann.
Santiago ainda detalhou que os treinamentos, realizados em centros de treinamento em Miami e em Key West, foram fundamentais para absorver tecnologias essenciais para a guerra antissubmarino, como o sonar e o radar, que eram ferramentas modernas na época.
Mas a Segunda Guerra Mundial impôs um alto custo ao Brasil. Durante as operações da Marinha, tanto a mercante quanto a de guerra, 1.456 pessoas perderam suas vidas.
Em termos comparativos, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), perdeu entre 450 e 500 soldados durante a campanha na Itália.
"Portanto, a Segunda Guerra, para o Brasil, é essencialmente uma guerra naval. Ela começa em 1939 e termina só com a rendição do Japão", notou Waldemann. "A guerra no mar é mais longa e tem maior número de baixas."
Terminado o conflito, a Marinha recebeu o reconhecimento devido pela sua atuação crucial. Os seus membros "foram recebidos pelo presidente da República Getúlio Vargas e posteriormente participaram do Desfile da Vitória na Avenida Rio Branco".
Amadurecimento da Marinha
Apesar do custo humano inestimável, "a experiência da guerra possibilita um salto tecnológico gigantesco" para a Marinha, disse o pesquisador.
"A Marinha que começa a guerra, não é a mesma que a termina. Ela muda absolutamente tudo: seu material, instalações, forma de treinamento, planejamento, doutrina e estratégia", ressaltou Waldemann.
"A partir da experiência da guerra, a Marinha vai se converter em uma força essencialmente antissubmarino, que deve operar de maneira alinhada aos EUA no Atlântico Sul. Essa percepção estratégica será mantida na força até a década de 70", contou Waldemann.
Santiago lamenta que muitos brasileiros não conheçam a trajetória da Marinha no conflito, mas lembra que "A Marinha do Brasil homenageia os Mortos da Marinha em Guerra, no dia 21 de julho, na data do emborcamento da Corveta Camaquã, quando faleceram 33 marinheiros".
Antes disso, no dia 24 de junho, a Rússia, aliada do Brasil no conflito, irá celebrar os 75 anos do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial, em data excepcional, em função da pandemia do novo coronavírus. Até lá, a Sputnik Brasil prepara uma série de reportagens para relembrarmos os momentos mais marcantes do conflito mais trágico do século XX.