Alta no investimento nas Forças Armadas acentua tendência verificada desde 2016 e reflete maior poder dos militares no governo. Para analistas, presidente busca apoio político da caserna em detrimento da área social.
Bruno Lupion | Deutsch Welle
O investimento do governo federal no Ministério da Defesa, que abrange Exército, Marinha e Aeronáutica, alcançou 16,5 bilhões de reais em 2019 – maior valor real da série histórica, iniciada em 2007, e correspondente a cerca de 29% de todo o investimento federal no período.
Bolsonaro ao lado de militares na Vila Militar, no Rio de Janeiro, em novembro de 2018 |
O percentual investido nas Forças Armadas em relação ao investimento federal total foi 89% maior do que o registrado em 2016 – a partir de quando houve alta consistente no peso desse item no orçamento de investimentos. De 2018 para 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, o peso das Forças Armadas nos investimentos federais saltou 33%.
A guinada não se explica somente pelo valor destinado aos investimentos na pasta da Defesa, mas principalmente pelo setor militar ter conseguido manter um alto patamar de gastos enquanto o total investido pelo governo no conjunto dos ministérios diminui significativamente a partir da crise de 2015.
A verba para investimentos é usada para erguer prédios, desenvolver tecnologias e construir ou comprar equipamentos, e não considera o gasto com salários, aposentadorias, pensões e custeio.
O Ministério da Defesa é a pasta que mais recebeu verba para investimento no ano passado. Em seguida, vem o Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável por habitação, saneamento e infraestrutura e mobilidade urbana, que recebeu 10,5 bilhões de reais. O Ministério da Educação ficou com 4 bilhões de reais para investimentos, e o da Saúde, com 3,7 bilhões de reais.
Do montante destinado às Forças Armadas, 7,6 bilhões de reais se destinaram à capitalização da Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), estatal que fabrica embarcações para a Marinha e que usará o recurso para construir corvetas, um tipo de navio militar.
O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que essa transferência de recursos para a Emgepron, formalizada em dezembro, estava programada para ser diluída em "três ou quatro anos", mas que, "por decisão política", ocorreu de uma só vez. Por se tratar de capitalização de uma estatal, o valor não é considerado no cálculo do teto de gastos do governo federal.
No governo Bolsonaro, a alta no investimento na Defesa vem acompanhada de outros sinais de incremento do poder dos militares em seu governo. Desde terça-feira, com a posse do novo ministro da Casa Civil, o general Walter Souza Braga Netto, todos os ministros que despacham do Palácio do Planalto são militares.
Além dele, o general Augusto Heleno é ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Luiz Eduardo Ramos é ministro da Secretaria de Governo, e o major da Polícia Militar do Distrito Federal Jorge Oliveira é ministro da Secretaria-Geral. Bolsonaro é capitão reformado do Exército, e o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, general.
Além disso, a reforma da Previdência dos militares, sancionada em dezembro, teve condições mais benéficas do que a dos trabalhadores da iniciativa privada e dos servidores civis, e foi acompanhada de uma reestruturação das carreiras que concedeu reajustes salariais aos militares.
Poder de decisão sobre as despesas
Wanderley Messias da Costa, professor de geografia política da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, afirma à DW Brasil que o espaço dado a investimentos e defesa no ano passado está relacionado à posição privilegiada que os militares alcançaram no governo Bolsonaro.
Ele pondera, contudo, que os programas militares que receberam os recursos para investimentos têm origem nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, segundo ele "os que mais investiram na modernização das Forças Armadas". Costa cita o lançamento do programa de submarinos e navios da Marinha, a aquisição dos caças Gripen e o desenvolvimento do cargueiro KC-390 pela Aeronáutica e do veículo de combate Guarani do Exército.
Essas iniciativas sofreram atrasos de cronograma e corte de verbas, especialmente após a recessão iniciada em 2015. Segundo Costa, Bolsonaro decidiu "fazer um agrado" aos militares em seu primeiro ano no Planalto, sendo o maior deles a capitalização da Emgepron.
Diego Lopes da Silva, pesquisador do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri) e especialista na relação entre instituições, transições políticas e gastos militares, afirma que, durante o governo Lula, a decisão de investir mais na pasta da Defesa se inseria numa estratégia de negociação para consolidar o poder civil sobre a caserna, na qual o papel político dos militares seria reduzido em troca da modernização dos equipamentos das Forças Armadas.
Essa estratégia, porém, não teve consequências perenes. O governo Bolsonaro aumentou o poder político dos militares, que, por sua vez, usam essa influência para garantir os investimentos em suas áreas, mesmo em situação de restrição fiscal. "Bolsonaro precisa do apoio político dos militares, então vai manter esse patamar de gastos", diz Lopes da Silva.
Costa afirma que o governo é "passível de crítica" por ter decidido compensar os cortes dos últimos anos neste momento, quando o país ainda está em situação de restrição fiscal. Porém, ele diz que o investimento na Emgepron também trará benefícios.
"Prefiro que o Brasil, se tiver que gastar, que gaste numa empresa de engenharia nossa. A Emgepron desenvolve, tem pesquisa e desenvolvimento, emprega engenheiros de alto nível. Valorizo esse lado de pesquisa e desenvolvimento, de investimentos em ciência e tecnologia, ainda que seja na área de defesa", afirma.
Para Lopes da Silva, em uma situação de escassez de recursos, é um "equívoco" priorizar gastos militares à revelia dos gastos sociais. "O Brasil tem riquezas que devem ser protegidas, porém as grandes ameaças ao nosso país são a falta de acesso a saneamento básico, à saúde, à educação", aponta.
"Não temos uma ameaça [militar] clara, estamos na região do mundo mais pacífica em relação a conflitos entre Estados. Isso nos dá liberdade para priorizar o desenvolvimento econômico e social", afirma.
Ele pondera que não seria o caso de retirar totalmente os investimentos e gastos com defesa, mas de encontrar um patamar compatível com a realidade e as prioridades do país.
Gasto total com militares
O valor investido na Defesa corresponde a cerca de 10% do orçamento total do setor. A folha de pagamento do pessoal da ativa, aposentados e pensões consome cerca de 80% das verbas, enquanto o restante é destinado a custeio, como manutenção de quartéis.
Se considerado o valor total, o gasto do Brasil com a Defesa representou 1,5% do PIB em 2019. Segundo o Sipri, desde 2007 o Brasil gasta de 1,3% a 1,5% do PIB no setor.
A Organização do Atlântico Norte (Otan), da qual o Brasil não faz parte, recomenda que seus países membros gastem 2% do PIB no setor, cifra que não é alcançada por todos – a Alemanha, por exemplo, planeja gastar 1,37% do seu PIB com o setor da defesa em 2020, e se comprometeu a alcançar a meta de 2% no início da próxima década.
Para Costa, o gasto atual do Brasil com a Defesa está num patamar adequado e não deveria ser elevado acima de 1,5% do PIB. "Não temos ameaças externas concretas, como em outros lugares do mundo. Poderíamos manter esse nível de gasto e diminuir os investimentos ao longo dos próximos anos. O Exército, por exemplo, já está preparado para receber seus carros de combate até 2035”.
Apesar de os gastos militares no mundo terem dado em 2019 o maior salto em uma década , devido a um aumento na percepção de riscos, ele diz que não se trata de uma "corrida armamentista obrigatória".
Já Lopes da Silva afirma que, antes de definir um percentual adequado para os gastos com a Defesa, o país deveria realizar uma análise consistente sobre as necessidades militares à luz das possibilidades orçamentárias.
"Não pode ser só um estudo analisando as necessidades da Defesa, tem que considerar as outras necessidades do país também", diz.
Ele aponta que também faltam estudos "sólidos e empíricos" que comprovem uma narrativa bastante utilizada no meio militar: a de que os gastos com investimento no setor e na indústria de defesa aumentam as exportações do país e trazem resultados positivos para a economia.
"Na partilha do orçamento, temos que considerar o custo de oportunidade. Se eu gastar 100 em defesa, terei quanto de retorno? E seu eu investir 100 em educação e saúde, qual retorno vou ter? É isso que devemos levar em conta. Vincular investimentos em defesa ao desenvolvimento econômico é uma ideia não baseada em evidências e não é honesta do ponto de vista democrático", afirma.