Uma onda de fúria e protestos violentos tem crescido na Índia. Os manifestantes tomam as ruas contra mudanças na política migratória tidas como discriminatórias aos 200 milhões de muçulmanos no país.
BBC News
Protestos que se espalham pelo país acabaram com dezenas pessoas presas e feridas, além de seis mortas. Ao menos três pessoas disseram ter sido atingidas por tiros de policiais durante os protestos na universidade Jamia Millia Islamia, no domingo.
Protestos que se espalham pelo país acabaram com dezenas pessoas presas e feridas, além de seis mortas. Ao menos três pessoas disseram ter sido atingidas por tiros de policiais durante os protestos na universidade Jamia Millia Islamia, no domingo.
Medida apoiada pelo primeiro-ministro Narendra Modi gerou onda de protestos pelo país, a exemplo de Déli | Reuters |
A BBC teve acesso ao relatório de atendimento hospitalar de uma pessoa que disse ter sido baleada. Segundo o documento, os médicos removeram um "objeto estranho" de sua coxa. E o homem ferido disse à BBC que viu um policial atirar nele com uma pistola ou revólver.
O porta-voz de outro hospital afirmou que duas pessoas foram atendidas no local com ferimentos de balas, segundo a mídia local. Mas a polícia nega ter atirado em manifestantes.
Muitos dos feridos participavam de protestos em universidades de Déli, onde dez pessoas foram presas - muitas delas já tinham "antecedentes criminais", segundo as autoridades.
Criticada pelo uso de "força excessiva" no campus, a polícia afirmou não ter detido nenhum aluno, mas sim "vizinhos da universidade" que teriam se juntado aos atos e atacado agentes de segurança.
O vice-reitor da universidade, Najma Akhtar, afimou que 200 pessoas ficaram feridas. Mas a polícia fala em 39 estudantes feridos, com 30 policiais também feridos, um deles com gravidade.
No domingo, um grupo de mulheres foi filmado em Déli tentando proteger um amigo dos ataques da polícia.
Uma delas, Ladeeda Farzana, afirmou à BBC que protestava porque "todo mundo sabe" que a lei "é contra muçulmanos". "Isso vai atingir cada muçulmano neste país. Saiba disso, venha para a rua, se junte e lute contra isso", afirmou a jovem de 22 anos.
A brutalidade policial serviu para alimentar muitas manifestações estudantis. Estudantes em Déli, Chennai e Varanasi protestaram contra o governo e apoiaram seus colegas na universidade Jamia Millia Islamia.
Em Calcutá, dezenas de milhares de pessoas participaram de uma manifestação.
O que diz a nova lei?
O novo texto é uma emenda à Lei de Cidadania Indiana, norma implementada há 64 anos que impede imigrantes ilegais de se tornarem cidadãos indianos. O país tem hoje 1,353 bilhão de habitantes.
Imigrantes ilegais são aqueles que entram na Índia sem passaporte ou visto válidos, ou permanecem no país além do tempo permitido. Caso sejam identificadas, essas pessoas podem ser deportadas ou presas.
Com a nova emenda, passam a poder solicitar cidadania todos que vivem na Índia ou trabalharam para o governo há pelo menos 11 anos.
Mas o texto permite que membros de seis minorias religiosas do Paquistão, Afeganistão ou Bangladesh - hindu, sikh, budista, jain, parsi e cristã - solicitem cidadania caso estejam ali há somente seis anos.
A nova lei também diz que portadores de cartões de Cidadão Ultramarino da Índia - um status de imigração que permite que um estrangeiro de origem indiana viva e trabalhe na Índia indefinidamente - podem perder o benefício caso cometam crimes.
A Emenda à Lei de Cidadania tem sido associada ao também controverso Registro Nacional de Cidadãos, ainda que ambos não tratem da mesma coisa.
Esse registro beneficia pessoas que podem provar que chegaram à Índia até 24 de março de 1971, um dia antes da vizinha Bangladesh se tornar independente.
Segundo dados do Censo de 2011, naquele ano a Índia tinha 1,21 bilhão de habitantes, sendo 80% hindus e 14% muçulmanos.
O que dizem governo, opositores e especialistas?
O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, do Partido Nacionalista Hindu Bharatiya Janata (BJP), disse que a nova lei é "para aqueles que enfrentam anos de perseguição lá fora e não têm para onde ir, exceto a Índia".
Segundo ele, a proposta passou nas duas Casas do Parlamento com "bastante apoio" e isso ilustra "a cultura indiana de aceitação, harmonia, compaixão e companheirismo ao longo dos séculos".
"Eu quero assegurar sem qualquer dúvida aos meus companheiros indianos que a lei não afeta nenhum cidadão da Índia de nenhuma religião."
O líder do partido do primeiro-ministro, Ram Madhav, defendeu que "nenhum país do mundo aceita imigração ilegal".
Mas Rahul Gandhi, adversário político de Modi na eleição de 2019, afirmou que a lei em questão e o registro de cidadãos são "armas de polarização em massa disparada por fascistas".
Opositores de Modi dizem que a lei é excludente, faz parte de uma agenda para marginalizar muçulmanos e viola os princípios seculares consagrados na Constituição. Para eles, a fé não pode ser transformada em critério para cidadania.
A Constituição indiana proíbe a discriminação religiosa contra seus cidadãos e garante a todas as pessoas igualdade perante a lei.
O historiador Mukul Kesavan diz que a nova lei é "aparentemente direcionada a estrangeiros, mas seu principal objetivo é a deslegitimização da cidadania muçulmana".
Críticos argumentam também que, se o objetivo fosse genuinamente proteger as minorias, a lei deveria ter incluído minorias religiosas muçulmanas que enfrentaram perseguição em seus próprios países, como ahmadis no Paquistão e rohingyas em Mianmar. O governo, aliás, foi à Suprema Corte em busca da deportação de refugiados rohingya da Índia.
"Se o governo for adiante com os planos de Registro Nacional, haveria duas categorias de excluídos: muçulmanos (majoritariamente), que seriam imigrantes ilegais, e todos os outros, que também seria imigrantes ilegais, mas acabaram imunizados pela Emenda à Lei da Cidadania, caso provem que vieram do Afeganistão, de Bangladesh ou do Paquistão", afirma o advogado Gautam Bhatia.
Para o sociólogo Niraja Gopal Jaya, as duas mudanças, juntas, têm o potencial criar "gradações de direitos de cidadania".