Ao abandonar os curdos, aliados de longa data, e abrir caminho para ofensiva turca, EUA deixam vácuo numa das áreas mais instáveis do Oriente Médio. Entenda como Irã, Rússia e até o "Estado Islâmico" devem sair ganhando.
Tom Allinson | Deutsch Welle
A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar soldados americanos do norte da Síria, abrindo caminho para uma ofensiva turca contra a minoria curda, pode favorecer Rússia, Irã, o regime sírio de Bashar al-Assad e o "Estado Islâmico" (EI).
Soldados turcos cruzam a fronteira rumo ao norte da Síria: curdos como alvo |
Ainda não se sabe até onde a Turquia pretende avançar contra os curdos e ocupar o espaço deixado pelas tropas americanas. Mas Ancara quer expulsar as Forças Democráticas Sírias (SDF), em grande parte curdas, que vê como uma ameaça doméstica, enquanto, segundo argumenta, criaria uma "zona segura" para o regresso de milhões de refugiados sírios hoje em território turco.
A pergunta agora é como Moscou, Teerã e Damasco reagirão, no que parece ter sido uma troca de favores entre a Turquia e os principais membros do chamado Processo de Astana – uma iniciativa de paz para a Síria conduzida pela Rússia e Irã, países que apoiam o regime de Assad.
Fato é que os curdos da Síria estão agora enfraquecidos nas negociações para uma aliança com Assad, a fim de repelir a Turquia. Duas tentativas anteriores de diálogo fracassaram, mas há sinais de que Damasco poderá fazer regressar à sua órbita, em troca de apoio militar, as áreas controladas pelos curdos.
Os curdos são aliados americanos desde a invasão do Iraque, em 2003. Desde 2011, recebem apoio dos EUA para combater o "Estado Islâmico". Os curdos, que somam até 40 milhões de pessoas espalhadas entre Síria, Turquia, Irã e Iraque e não possuem território próprio, também combatem o regime de Assad e são inimigos do governo turco, que considera as SDF um grupo terrorista.
Espaço para a Rússia
A retirada dos EUA abriu condições para Moscou consolidar a sua posição como potência numa eventual paz síria ao devolver Idlib, no oeste do país, às forças de Assad.
Como parceiro militar-chave das forças do regime sírio, a Rússia se viu frustrada pela incapacidade da Turquia de desarmar os rebeldes jihadistas em Idlib. Mas o aparente acordo com a Turquia significa que muitos rebeldes serão atraídos para uma nova frente, aberta por uma invasão turca no leste.
Isto permitiria à Rússia dar luz verde a Assad para recuperar território-chave numa das frentes finais da guerra síria, que já se estende por oito anos.
A Rússia quer que os EUA abandonem a Síria e afirma repetidamente que acredita que os americanos estão na Síria ilegalmente.
Embora Rússia e Turquia apoiem lados opostos na guerra síria, Moscou vê como positiva uma retirada total dos EUA da Síria, pois daria aos russos ainda mais poder – não apenas para moldar o futuro da Síria, mas em todo o Oriente Médio.
A volta do "Estado Islâmico"?
Brett McGurk, antigo representante dos EUA na coalizão global contra o "Estado Islâmico", descreveu a decisão de Trump como um "presente à Rússia, ao Irã e ao EI". Já Salih Muslim, porta-voz do Partido de União Democrático, aliado das forças curdas, teme que o território curdo seja invadido pelos radicais salafistas de Idlib.
"A Turquia vai trazer todos os jihadistas para mais perto desta área e possivelmente estabelecer um tipo de território que pertence apenas aos salafistas", disse Salih Muslim. "A Turquia estava feliz antes, quando eles estavam na fronteira e estava negociando com eles e obtendo petróleo deles. Talvez a Turquia vá estabelecer um novo califado."
A SDF também terá de lidar com os cerca de 70 mil combatentes do "Estado Islâmico" detidos em campos sob o seu controle, num momento em que concentrará as suas forças numa batalha ao norte, com a Turquia.
Salih Muslim questiona a declaração de Trump de que a Turquia vai agora assumir a responsabilidade pelos detidos. "Os membros do ‘Estados Islâmico' foram apoiados pela Turquia, até mesmo armados por eles e enviados para a Síria. Então, como podem tornar-se responsáveis por eles? Eles vão reorganizá-los e usá-los como chantagem contra a Europa."
Irã fortalecido
O Irã também sairá ganhando, numa situação em que qualquer retirada dos EUA da região lhe permite expandir a sua influência regional. O vácuo deixado por uma retirada dos EUA permite que Teerã consolide suas forças na Síria em meio a uma "guerra por procuração" com Israel.
Essa perspectiva pode antagonizar Israel, que já bombardeou seguidas vezes a Síria com o objetivo declarado de atingir instalações e linhas de abastecimento iranianas. Pode também encorajar Israel a estender sua própria "zona segura" no sul da Síria para se contrapor ao Irã e seu aliado libanês, o Hisbolá.
O ataque contra a minoria curda é considerado por observadores como potencialmente a maior mudança em anos na guerra síria, ao envolver diretamente potências globais e regionais. A decisão de Trump de sair da região foi denunciada pelos curdos como uma punhalada nas costas, crítica repetida também dentro dos EUA, inclusive por membros do Partido Republicano.
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