A Segunda Guerra Mundial começou com uma mentira. Franciszek Honiok foi morto numa fictícia agressão polonesa encenada para justificar o ataque à Polônia. Ele caiu no esquecimento e seu assassino ficou impune.
Elzbieta Stasik | Deutsch Welle
"O 'Führer' precisa de um motivo para a guerra", disse Reinhard Heydrich, chefe do Escritório Central de Segurança do Reich, em agosto de 1939. O plano era simples: os alemães realizariam uma série de incursões fronteiriças e alegariam que foram perpetradas por poloneses.
Torre de rádio em Gliwice, na Polônia |
A mais importante dessas encenações foi um ataque de "insurgentes poloneses" à emissora de rádio alemã de Gleiwitz, (hoje a cidade polonesa de Gliwice), na Silésia. "Atenção, aqui é Gleiwitz, a emissora está em mãos polonesas". Os nazistas queriam que essas palavras corressem o mundo. Na verdade, um comando da SS, a tropa de elite nazista, liderado por Alfred Naujocks, estava por trás do suposto ataque.
"A mentira que se construiu ali foi impressionante", diz o historiador Florian Altenhöner, em entrevista à DW. Ele é o autor do livro Der Mann, der den 2. Weltkrieg begann: Alfred Naujocks: Fälscher, Mörder, Terrorist (O homem que iniciou a Segunda Guerra Mundial: Alfred Naujocks: falsificador, assassino, terrorista, em tradução livre). "Devemos nos perguntar por que esse regime não confiou em seu poder, mas quis dar a impressão de agir moralmente, de que a guerra ofensiva alemã precisava ser justificada como uma guerra defensiva. Essa é uma estranha noção de força."
A operação na emissora de rádio fracassou por razões técnicas. A mensagem propagandística dos supostos poloneses só foi captada em uma pequena área ao redor de Gleiwitz. O sinal nem chegou a Berlim. Mas, como planejado, na rádio ficou para trás o cadáver de um dos supostos "invasores poloneses". Os nazistas o chamaram cinicamente de "conserva". O termo desumano servia para designar os corpos que os nazistas colocavam nos locais de operações para dar credibilidade aos ataques supostamente de poloneses.
O morto era Franciszek Honiok, um cidadão alemão, vendedor de máquinas agrícolas, que tinha grande simpatia pela Polônia. É provável que estivesse na mira da Gestapo, a polícia secreta da Alemanha nazista. Ele havia sido detido um dia antes e sua morte serviu como prova da "culpa polonesa" no ataque.
O próprio Naujocks negaria a responsabilidade pela morte de Honiok. "Foi uma tarefa altamente política, realizada de acordo com as instruções", diria à revista Der Spiegel em 1963.
Farsa cumpriria seu objetivo
Poucas horas depois do incidente encenado em Gliwice, houve mais dois falsos ataques: a um alojamento florestal alemão em Pitschen (atual Byczyna) e a uma estação aduaneira em Hochlinden (hoje Stodoły, ambas na Polônia). Também em Hochlinden foram descobertos dois chamados "conservas" – desta vez, prisioneiros do campo de concentração Sachsenhausen.
"A Polônia atirou pela primeira vez hoje à noite em nosso território. Desde as 5h45, há agora disparos de revide!", anunciou Hitler em 1° de setembro de 1939. Ele errou por volta de uma hora, o que era um dado secundário. Os jornais, especialmente o Volkischer Beobachter, órgão oficial do partido nazista, NSDAP, comentaram os "ataques" poloneses com indignação. A montagem da farsa cumprira seu objetivo: a Alemanha supostamente não tinha outra escolha a não ser reagir.
Na carreira de Alfred Naujocks, Gliwice foi apenas uma das muitas "ações" a serviço do regime nazista. O mecânico especializado em ortopedia participou, entre outros, do sequestro de dois oficiais de inteligência britânicos na Holanda, da falsificação de notas bancárias britânicas e de "contraterrorismo" ao movimento de resistência na Dinamarca. Ele foi responsável por pelo menos três mortes, incluindo Honiok. Naujocks foi condenado apenas uma vez – em 1949 na Dinamarca, inicialmente por 15 anos de prisão. Em segunda instância, a pena foi reduzida a cinco anos. Mas já em junho de 1950 ele foi libertado.
"Aventuras" contadas por Naujocks
Naujocks voltou para sua cidade natal, Kiel, depois foi morar em Hamburgo. Ele se casou quatro vezes, levou uma vida razoavelmente de classe média e falava abertamente sobre suas "aventuras". "Naujocks foi um dos poucos criminosos nazistas que contava publicamente sua história", diz o historiador Altenhöner. "Foram publicados artigos sobre ele, histórias em capítulos, em revistas de variedades. Mas isso também tem a ver com o fato de que essas ações das quais ele falava poderiam ser contadas sob o pretexto de serem aventuras, histórias de espionagem. A indignação pública teria sido diferente se ele tivesse falado em assassinatos."
Em 1961, o diretor alemão Gerhard Klein fez o filme Der Fall Gleiwitz (O caso Gleiwitz), baseado principalmente nas declarações de Naujocks no tribunal de Nurembergue. O filme foi mostrado apenas em cineclubes alemães. Em uma escola de comércio em Hamburgo, fora programado até mesmo um evento "com participação especial de Naujocks".
As autoridades de ensino da cidade impediram o evento no último minuto. No entanto, o Ministério Público tomou conhecimento de Naujocks e abriu uma investigação preliminar contra ele. Já era a quinta tentativa na Alemanha de responsabilizá-lo judicialmente. Foi em vão, já que em 1966 Naujocks morreu de insuficiência cardíaca.
O processo foi assumido pelo Ministério Público em Düsseldorf, onde viveu o ex-motorista de Naujocks. Embora tenha sido arquivado por falta de provas, o processo pelo menos permitiu que pudesse ser determinada a identidade de Franciszek Honiok, assassinado em Gliwice. Depois de três décadas, a vítima, chamada de "conserva" pelos nazistas, receberia um nome.
Por ocasião do 80º aniversário da "provocação de Gleiwitz", neste 31 de agosto de 2019, a família Honiok foi convidada a Gliwice pela primeira vez, para lembrar Franciszek, a primeira vítima da Segunda Guerra Mundial.
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