Em causa estão os emolumentos recebidos por serviços prestados aos cidadãos, em que parte reverte para o Estado e a restante é dividida pelos profissionais envolvidos, que militares na reserva têm continuado a receber como se ainda estivessem no ativo.
Manuel Carlos Freire | Diário de Notícias
A Procuradoria-Geral da República (PGR) considera que os militares na reserva apenas têm direito a receber a remuneração base e suplementos expressamente previstos na lei, segundo um parecer pedido pelo Ministério da Defesa.
O então secretário de Estado da Defesa Marcos Perestrello recebeu o parecer da PGR em dezembro de 2016 e só o remeteu aos chefes militares em maio de 2018 © Reinaldo Rodrigues/Global Imagens |
O documento, que o ministério enviou ao DN dias após a PGR ter dito que não via qualquer inconveniente à sua publicação, diz respeito aos militares das Forças Armadas (FA) que passam à reserva e continuam a receber emolumentos além da remuneração de reserva e de determinados suplementos.
Os emolumentos são verbas recebidas por serviços prestados aos cidadãos, em que uma parte reverte para o Estado (em regra 20%) e a restante é repartida entre os profissionais envolvidos (65%) e aplicada nas áreas de manutenção, operação e investimento (35%).
No caso das Forças Armadas e na base do pedido de parecer estão os militares que, já na reserva e sem prestar serviço nas capitanias dos portos ou noutras estruturas da Autoridade Marítima, têm continuado a receber emolumentos pagos pelo ramo por atividades não desenvolvidas na vida militar.
"Se um determinado abono deixa de justificar-se na reserva sem a prestação de serviço efetivo [...] seria incongruente continuar a pagá-lo apenas por razões ficticiamente igualitárias" com quem está no ativo ou na efetividade de serviço, conclui a PGR.
Por comparação, a PGR reconhece que os militares das Forças Armadas na reserva devem continuar a receber suplementos remuneratórios diretamente ligados ao desempenho de certas funções militares no ativo (perigo, desgaste, riscos para a saúde) que a lei expressamente identifica.
Em causa estão dezenas de militares a receber centenas de euros mensais (cujo total varia consoante as receitas produzidas pelos locais donde saíram) cada um e que, depois, lhes permitem ter pensões de reforma muito superiores às dos militares com o mesmo posto - mesmo às dos oficiais generais de três e quatro estrelas, em alguns casos.
Caso arrasta-se há uma década
Remontam a 2009 as dúvidas quanto ao cálculo da remuneração de reserva dos militares das FA, na sequência da aprovação do regime remuneratório dos efetivos das Forças Armadas. O impacto dessa alteração no valor da pensão de reforma dos militares iria criar uma alegada desigualdade face aos restantes funcionários públicos, pelo que o então secretário de Estado da Defesa Marcos Perestrello decidiu manter os procedimentos em vigor até serem clarificadas essas dúvidas.
Em 2016 e após os anos da troika, o mesmo Marcos Perestrello requereu à PGR que analisasse o caso - e as conclusões daquele órgão rejeitam a leitura dos militares quanto a uma desigualdade face aos restantes trabalhadores do Estado.
"Na passagem à reserva, a remuneração base mensal só vai acompanhada pelos acréscimos remuneratórios que o legislador entendeu consentâneos e segundo o quantitativo que tiver estabelecido", afirma o Conselho Consultivo da PGR, elencando quais os suplementos "que a lei prevê como extensivos à situação de reserva" e que são "o suplemento da condição militar e os suplementos devidos pelo exercício de funções em particulares condições de perigosidade, insalubridade, risco e desgaste".
"Nada permite reconhecer à participação em taxas emolumentares qualquer afinidade com particulares condições de perigo, insalubridade, risco ou desgaste" - a que correspondem os suplementos de serviço aéreo e aerotransportado, de imersão e dos operadores de câmara hiperbárica, além da gratificação suplementar dos mergulhadores da Marinha - "e que são qualificativo necessário para o regime remuneratório dos militares das FA na reserva", observa a PGR.
As perguntas
O Conselho Consultivo da PGR enviou esse parecer ao gabinete do então ministro da Defesa Azeredo Lopes em dezembro de 2016 e com um pedido para o governo "informar se o mesmo foi homologado" - o que não aconteceu, sendo apenas enviado em maio de 2018 pelo ex-secretário de Estado da Defesa Marcos Perestrello aos três ramos e ao Estado-Maior-General das FA.
Marcos Perestrello, que disse ao DN já não se lembrar das razões que o levaram a pedir o parecer à PGR, colocou três questões. A primeira visava saber se a fórmula de cálculo da remuneração de reserva dos militares das Forças Armadas inclui remunerações previstas no Estatuto da Aposentação (EA) - leia-se "a média mensal" de verbas recebidas pelo subscritor "nos dois últimos anos" (artigo 47.º, 1, alínea b) e que não estão ligadas a funções da carreira militar.
As outras duas perguntas visavam saber se os militares das Forças Armadas na reserva beneficiam do regime previsto no EA (receberem subsídios não expressamente ligados à carreira castrense) e se, não tendo direito a isso, existe "uma violação" do princípio constitucional da igualdade face a outros funcionários públicos
Marcos Perestrello, que enviou o parecer às FA para "os efeitos tidos por convenientes", disse ao DN que o documento não precisava de ser homologado para os ramos aplicarem o entendimento legal da PGR.
"Quem executa [os pagamentos] são os ramos, eles é que passam o cheque", argumentou o agora deputado socialista, sem responder quando questionado sobre o porquê da demora de 15 meses em enviar o parecer às chefias militares.
"Transversal a todos os ramos"
Fonte do Ministério da Defesa disse ao DN que está em causa "uma matéria transversal a todos os militares", pelo que o parecer "foi enviado para os três ramos das Forças Armadas, encontrando-se esse processo atualmente em análise".
O universo de militares abrangido pelo parecer pertence essencialmente à Marinha, embora restrito aos que passam diretamente à reserva após prestarem serviço na Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) e na Polícia Marítima. Mas o potencial impacto da aplicação do parecer sobre todos os militares das FA na reserva justificou a criação de um grupo de trabalho informal para estudar o caso em junho de 2018 - que a Marinha propôs aos outros ramos reativar nas últimas semanas, soube o DN.
O porta-voz da Marinha, comandante Pereira da Fonseca, disse ao DN que as FA estão "a analisar as opções legislativas que carecem de ser aprovadas para regulamentar a presente matéria", estando o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) integrado nesse grupo de trabalho.
EMGFA só analisa questões de âmbito militar
Mas o porta-voz do EMGFA, comandante Coelho Dias, referiu que esse é um problema externo aos militares das Forças Armadas.
"Não se afigura ser o EMGFA competente para se pronunciar sobre a aplicação de matéria emolumentar da Autoridade Marítima Nacional [AMN], órgão que não pertence à estrutura das Forças Armadas", enfatizou Coelho Dias.
Ao EMGFA compete "elaborar pareceres e propor medidas relativas aos vínculos, carreiras, remunerações e avaliação do desempenho do pessoal militar, militarizado e civil das Forças Armadas", destacou.
Pereira da Fonseca alertou, contudo, que o caso "não envolve apenas os emolumentos" pagos aos militares que passam à reserva após servirem na AMN, "mas também o suplemento de condição militar e os suplementos devidos pelo exercício de funções em condições de perigosidade, insalubridade, risco e desgaste".
"Daí a necessidade da matéria ser estudada em conjunto pelo EMGFA e pelos três ramos das Forças Armadas", adiantou o comandante Pereira da Fonseca, dando "especial atenção a um aspeto relevante: o facto da eventual aplicação do entendimento defendido no parecer da PGR implicar a desigualdade no cálculo da remuneração de reserva e de reforma em relação aos outros trabalhadores do Estado, designadamente aos militares da GNR (cujo regime remuneratório salvaguardou a coerência com o Estatuto de Aposentação)."
Note-se que a aprovação do Estatuto dos Militares da GNR, em 2017, gerou protestos das FA por entenderem que existiam diferenças entre os efetivos desses dois corpos. Daí o Ministério da Defesa ter pedido às chefias militares que apresentassem uma proposta para alterar o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) a fim de as eliminar.
A proposta em causa foi aprovada pelo Parlamento, deixando "claro que, tanto a tutela como a Assembleia da República, pretendem que exista uma equidade entre militares das FA e da GNR", sublinhou o porta-voz da Marinha.
"Foi com este entendimento - de eliminar as desigualdades entre militares das FA e militares da GNR, no que à remuneração de reserva diz respeito - que a Marinha e os restantes ramos receberam, para os efeitos tidos por convenientes, o parecer da PGR remetido pela tutela", frisou Pereira da Fonseca.
"E foi com o exemplo" da referida alteração ao EMFAR "em mente" que o grupo de trabalho das FA "orientou os seus trabalhos, encontrando-se quase finalizada e prestes a ser submetida à tutela uma proposta de medida legislativa destinada a garantir a necessária equidade entre militares das Forças Armadas e da GNR no que respeita à remuneração de reserva", explicou o porta-voz.
PGR afasta desigualdade
A verdade é que aquele diploma do Parlamento foi aprovado um ano após o governo receber o parecer da PGR e não corrigiu os referidos aspetos remuneratórios.
Para a PGR, cujos "pareceres do Conselho Consultivo exercem um papel de relevo na uniformização da jurisprudência e na clarificação do direito" desde que homologados e publicados, não existe violação do princípio constitucional da igualdade nessa matéria.
Os procuradores registam que há uma "margem de diferenciação" entre os estatutos dos militares das FA e da GNR, sem a qual "haveria de ser exigido constitucionalmente - e não o é - um único estatuto para todos os militares" das FA e da GNR.
Depois, feita a comparação entre os tipos de suplementos que uns e outros podem receber na situação de reserva, a PGR conclui. "Não obstante o tratamento diferenciado, é conservada a razoabilidade e, por conseguinte, não se descortina violação do princípio da igualdade."
"Não se descortina violação do princípio da igualdade [entre militares das Forças Armadas e da GNR]."
São três as razões na base dessa conclusão, a primeira das quais porque "há um padrão basicamente igual" na definição do cálculo das duas remunerações de reserva - os suplementos dos militares da GNR também são contabilizados "em proporção ao número de anos de serviço contados para a reserva", entende a PGR.
Depois, os suplementos em causa "encontram-se taxativamente enunciados" e "a diferença maior" entre os militares da GNR face aos das FA "é que para estes a base de cálculo é o último posto no ativo, ainda que ocupado por tempo inferior a dois anos" - enquanto para os da Guarda "é preciso que o suplemento tenha sido percebido nos últimos dois anos para poder constituir base de cálculo por inteiro".
"Por último, a aparente discriminação fica ainda mais dissipada se considerarmos a relevância das participações emolumentares" pois "não ingressam no cálculo da remuneração da reserva" dos militares da GNR. "A sua relevância, em ambos os casos", confina-se ao cálculo da pensão de aposentação ou de reforma", sustentam os procuradores.
Remuneração "e não mais pensão de reserva"
A PGR explica ainda que um militar na reforma "está a ser abonado em sintonia com os descontos" - feitos no ativo e na reserva - "que incidiram sobre as remunerações e acréscimos remuneratórios [...] devidos como contrapartida pelo serviço prestado".
Como "apenas aos militares na reserva que se encontram a prestar serviço efetivo é devido tratamento remuneratório inteiramente igual" aos dos que estão no ativo (mesmo posto e posição remuneratória), a PGR entende que "o emprego do termo remuneração na reserva, e não mais pensão de reserva, denota bem a razão de ser do regime reservista". Em síntese, o cálculo das remunerações dos militares na reserva "não tem como fonte o Estatuto da Aposentação".
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