Presidente do Parlamento venezuelano diz que todas as opções para desalojar Maduro estão abertas.
Ele já foi reconhecido como mandatário interino da Venezuela por mais de 50 Governos
Francesco Manetto | El País
Juan Guaidó (La Guaira, Venezuela, 1983) chega depois das 20h ao hotel de Caracas onde está marcada a entrevista ao EL PAÍS. Acaba de percorrer a cidade em uma nova jornada de concentrações contra Nicolás Maduro. Seus seguidores desta vez se mobilizaram após um apagão de mais de quatro dias e em meio a uma grave crise de fornecimento de água potável. O presidente da Assembleia Nacional, reconhecido como mandatário interino por mais de 50 Governos, está há quase dois meses tentando desalojar o sucessor de Hugo Chávez com a ajuda da pressão internacional.
Juan Guaidó, nesta terça-feira em Caracas. ANDREA HERNÁNDEZ |
O Ministério Público acaba de abrir um inquérito para investigar seu suposto envolvimento naquilo que o chavismo considera ser uma sabotagem dirigida pelos Estados Unidos. O político venezuelano não mostra preocupação. Seu objetivo continua intacto: obter a renúncia do Governo, iniciar um processo de transição e convocar eleições livres. Para isso, afirma, terá que contemplar “todas as opções”, embora se recuse a falar abertamente em uma intervenção militar.
Pergunta. A Assembleia Nacional decretou “estado de alerta” no país. No que se traduz esta decisão, além do seu simbolismo?
Resposta. O estado de alerta é resultado de uma comoção gerada por causas políticas. Normalmente, esse tipo de recurso seria usado em situações de catástrofe climática ou um desastre natural. Hoje na Venezuela não gozamos de normalidade. Em um país normal a ajuda internacional teria entrado. Aqui o regime ainda não deu uma versão oficial técnica sobre o que aconteceu e denuncia um jornalista venezuelano, Luis Carlos Díaz, por ataque cibernético. Criou a crise por não observância da manutenção, por imperícia no uso dos sistemas, por corrupção na contratação. Devíamos responsavelmente decretar o alerta, explicar as razões. Sabíamos que o regime ia contrapor com uma versão tão amalucada como um ataque cibernético a um computador que é analógico para proteger-se precisamente de qualquer ataque. Fizemos isso [decretação do alerta] para poder responder politicamente e esperemos que tecnicamente no curto prazo.
P. Hoje [terça-feira] o Ministério Público abriu um inquérito a seu respeito por “suposto envolvimento”.
R. Foi um show propagandístico de alguém sem competência [o promotor], como não a tinha para me proibir de sair do país.
P. O chavismo fala em sabotagem e não apresentou provas. Mas vocês têm provas para defender sua versão?
R. Um relatório apresentado em 2017 no Parlamento, onde consta que foram roubados 100 bilhões de dólares, as empresas que foram contratadas, os desembolsos de dinheiro, o voto de censura a Motta Domínguez como ministro da Energia. Nós as apresentamos há dois anos, alertamos para a emergência e propusemos soluções inclusive naquele momento. Aí está a grande diferença.
P. Duas semanas depois da operação para introduzir ajuda na Venezuela, um vídeo publicado pelo The New York Times mostra que alguém lança um coquetel molotov do lado colombiano, o que provoca o incêndio de um dos caminhões.
R. É difícil que, baseado nisso, três caminhões tenham queimado. E se vê claramente quem bloqueia o caminhão, quem dispara bombas lacrimogêneas, e que logo depois de um momento de briga quem reage é o manifestante frustrado por não poder ingressar com a comida. Então, essa mesma argumentação que o regime defende, acho que não faz sentido quando eles utilizaram presos, coletivos armados para disparar em indígenas, para bloquear estradas com ajuda humanitária.
P. No final janeiro, em outra conversa com EL PAÍS, lhe perguntamos se a Venezuela não corria o risco de parar num impasse. Um cenário no qual ninguém ganha e ninguém perde, que possa se prolongar no tempo. Você acreditava que isso não ocorreria. Ao final, é o que está acontecendo?
R. Estamos há 20 anos neste processo e vimos o desmonte do Estado de direito, vimos a perseguição, sofremos a perseguição e temos 40 dias nesta parte do processo, que não chegou sozinha. Logo depois de termos construído maioria, logo depois de termos fundado partidos políticos, de termos ganhado o Parlamento nacional, protestado, exigido, visibilizado a crise, chegamos ao hoje e ao agora. E quem hoje impõe um custo à transição, quem impõe um custo à melhora social, quem bloqueia estradas é Maduro. Ele acha que ganha numa falsa resistência. Já nem fala de atos de governo, fala de que resistiram a um ataque que não existiu. Se você vai inventar uma sabotagem que não existiu, pelo menos deveria sair ganhando. Mas a variável de vitória é que resistiram um ataque que eles mesmos desataram por causa da corrupção. E dizem que devem sair os coletivos armados. É uma apologia ao ódio, ao delito, ao crime. Para nós este é um tempo perdido.
P. E enquanto isso seus seguidores não podem desanimar?
R. Todos os processos sociais sofrem altos e baixos, vivemos isso na Venezuela em 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019. É um processo muito intenso para nós, que não começou hoje e não vai terminar até que obtenhamos o objetivo, que é a democracia e a liberdade em nosso país. Vamos ter desgaste e temos riscos? Sim. Muitos. De vida, da prisão, familiares, mas é o processo que nos coube aos venezuelanos viver e que uma geração herdou. Eu não votei em Chávez, não podia fazê-lo, tinha 15 anos quando chegaram e vi como veio a pique um país com reservas petroleiras gigantescas. Era muito fácil sonhar com uma Venezuela próspera. Mas algo as pessoas têm claro na Venezuela: que com Maduro não há nenhum tipo de futuro, nem sequer há presente.
P. Seus apelos contínuos às Forças Armadas produziram muitas deserções, mas não há uma fratura da cúpula. Ao menos não se vê. Continua acreditando que pode ocorrer?
R. Confio no venezuelano, primeiro. E os militares são venezuelanos. Há muito medo nas Forças Armadas, muita perseguição. Como parte desta decisão [a declaração de alerta nacional, na segunda-feira] chegaram-me muitos contatos. De generais até capitães, tenentes, que me disseram coisas como “Mande um áudio para a minha mãe”, como “Estamos com você”, mas não há uma liderança clara dentro das Forças Armadas. Há uma quebra nas Forças Armadas quando há milhares de oficiais que se atrevem a ficar do lado da Constituição. Então, esperamos mais? Claro que esperamos mais.
P. Quer dizer que, segundo você, é questão de tempo?
R. É a primeira vez que nos comunicamos com as Forças Armadas. Tivemos anos de separação. A relação entre cidadão e Estado é muito hostil na Venezuela. É de terror ou de subsídio no melhor dos casos. Surpreendeu-me o respaldo à proposta da lei de anistia, e o venezuelano entendeu que necessitamos dela para a primeira mudança, para o fim da usurpação, depois para a transição e para que fique do lado da democracia para sempre.
P. No sábado você mencionou um artigo da Constituição, o 187.11, que autoriza uma intervenção em território venezuelano. Disse que a cogitaria quando chegasse o momento. O que quer dizer?
R. Já tentamos de tudo na Venezuela. Literalmente. Sempre no âmbito da não violência. E vamos insistir. Se um jogador de futebol perde um pênalti, não quer dizer que um pênalti não seja um mecanismo para fazer gol: o protesto pacífico, o exercício dos nossos direitos, a insistência. Mas também se sente a frustração em certo sentido. Como um venezuelano se defende de um coletivo armado? Como um venezuelano se defende de grupos paramilitares que o perseguem constantemente? De um regime que sequestra as Forças Armadas e lhe nega comida e remédios? Há um franco dilema, que é de proteção ao cidadão. [A tenista espanhola] Garbiñe Muguruza nasceu em Guarenas-Guatire [40 quilômetro a leste de Caracas], aos quatro ou cinco anos se mudou para a Espanha. Se se tivesse ficado na Venezuela teria chegado a ser a número um do mundo? Não é somente o custo que estamos pagando hoje, e sim o custo em oportunidades sociais. Então, para nós é uma responsabilidade falar de todas as opções.
P. Não se arrepende de um tuíte, publicado há três semanas, em que defendia que era preciso cogitar todas as opções “para obter a liberação"? Foi interpretado como alusão a uma intervenção.
R. Acho que foi responsável. Acho que responsavelmente devo falar de todas as opções para obter o fim da usurpação.
P. E considera provável ou possível uma intervenção estrangeira?
R. É uma opção obviamente polêmica. Se você perguntar a qualquer cidadão do mundo se quer a guerra ou a paz, 99,9% vão dizer paz. Esse não é um dilema. Nós o que queremos fazer responsavelmente é cobrir todas as etapas para sair de uma ditadura e obter todos os apoios necessários para proteger nossos cidadãos. Devemos necessariamente enfocar nesse sentido. Além disso, aqui não há possibilidade de uma intervenção, porque há um Governo em exercício, encarregado [em referência a sua equipe], que tem capacidade de pedir cooperação. Agora, não depende só de nós, mas sim da possibilidade de cooperação de alguns países.
P. Por cooperação você se refere ao que se viu na fronteira em 23 de fevereiro? Faz algum tipo de autocrítica sobre aquela operação?
R. Claro, porque não conseguimos entrar com a maioria do que queríamos entrar. Nesse sentido, é preciso rever como se entra. Agora, a ação, o objetivo continua vigente. E parece mais claro ainda quando acaba a luz e a ajuda é mais necessária. Então, objetivo, metodologia, respaldo internacional, geração de tecido social para criar voluntários para obter a pressão para que a ajuda entre. Tudo isso acredito que seja ótimo.
P. E um excessivo protagonismo dos EUA e de Donald Trump nesta crise não pode lhes tirar credibilidade perante uma parte da opinião pública ou da Europa?
R. A primeira coisa que tenho que reconhecer é a determinada posição da Administração Trump em relação ao que acontece na Venezuela, como foi a do Peru, Colômbia, Brasil, Paraguai, a de Sebastián Piñera, Mauricio Macri e Lenín Moreno. Devo agradecer à Administração Trump, insisto, como agradeço à de Duque, à de Bolsonaro, aos eurodeputados que falaram muito claramente, aos partidos políticos na Espanha, Austrália, Japão, Marrocos e Coreia do Sul. Este não é um assunto de um país ou outro. É um assunto de um claro reconhecimento internacional da crise que a Venezuela vive.
P. E à Europa e à Espanha, o que você pede?
R. Do seu ponto de vista, fizeram o que podiam fazer. Obviamente, os venezuelanos sempre quisemos um passo a mais e mais rápido. E nossos tempos aqui são bem delicados. Para nós o sentido de urgência vai muito além.
P. Sente-se apoiado pela Espanha?
R. Sinto-me apoiado pelo Governo... pela Espanha em geral.
P. Por que não convocou eleições ao final de 30 dias como estabelece o artigo 233 da Constituição, ao qual você apela?
R. Porque não estamos em um processo de elementos simbólicos. Se formos a uma eleição, seria similar inclusive à que fez Maduro no ano passado [quando a maioria das forças opositoras não participou]. Concorreria eu sozinho, e isso não é uma eleição. Para isso temos que ter uma transição, a construção dos fatores políticos, a reinstitucionalização do país. Que seja uma eleição real, livre, com um árbitro imparcial, observação internacional, com garantias para todas as partes. Com o direito a eleger e ser eleito, o que parece uma bobagem. Algo corriqueiro, mas estamos disputando isso.
P. Recebe instruções de Leopoldo López, como dizem seus críticos?
R. Acho isso um ataque inclusive ocioso, banal. Faço parte do Vontade Popular. Leopoldo foi o coordenador nacional do partido. Há muitas visões que são consensuais, como deve ser na política, com construção de consenso. Querer fazer ver que estamos ou não tutelados por Leopoldo ou pelos Estados Unidos, o Grupo de Lima, é estéril. É tratar de minar uma liderança que foi uma construção coletiva do momento que a Venezuela vive. Diria Ortega y Gasset: “Eu sou eu e a minha circunstância”. Nem sequer é um ataque, é um elemento ocioso. Estamos fazendo um grande esforço em conjunto com Leopoldo, com Henrique, com María Corina, com Henri Ramos, com o chavismo dissidente inclusive. Neste momento sou o presidente encarregado da Venezuela.