Em 11 de fevereiro de 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini chegou ao poder no Irã, substituindo o xá Mohammad Reza Pahlavi (apoiado pelo Ocidente) e instalando a República Islâmica. O que poucos sabiam naquela época e ainda hoje é que o governo britânico desempenhou um papel fundamental no apoio ao líder antes e depois da Revolução Islâmica.
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"Se você erguer a barba do aiatolá Khomeini, você encontrará 'FEITO NA INGLATERRA' escrito em seu queixo", queixava-se o xá Mohammad Reza Pahlavi, ainda antes do fervor insurrecional de muitos meses que abalou o reino e, finalmente, em janeiro de 1979, pôs fim ao seu reinado de 38 anos.
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À primeira vista, essa era uma declaração estranha para o xá – afinal, ele próprio havia sido reinstalado como governante supremo do Irã por um golpe anglo-americano em agosto de 1953. Desde então, ele tinha sido um aliado aparentemente inabalável de Londres, prestando assistência militar a vários regimes apoiados pelos britânicos na região do Golfo, tornando-se um dos maiores mercados de armas do país no Oriente Médio e permitindo à empresa petrolífera British Petroleum pilhar as vastas reservas de petróleo do país.
Além disso, em abril do ano anterior, a então líder da oposição Margaret Thatcher visitou Teerã e reafirmou veementemente o apoio britânico ao governo de Pahlavi. Thatcher disse nessa ocasião:
"Observei o progresso do Irã. Fiquei impressionada com a velocidade e a confiança com que esta terra antiga se transformou, em uma única geração, de um dos países mais pobres do mundo em uma de suas principais potências militares e industriais. [O xá] deve ser um dos estadistas mais clarividentes do mundo […] nenhum outro líder mundial deu a seu país uma liderança mais dinâmica. Ele está liderando o Irã ao longo de um renascimento no século XX", disse ela.
Apenas dois meses depois, o então ministro das Relações Exteriores britânico, David Owen, assinou o contrato para o fornecimento de 175.000 projéteis de gás CS e cerca de 360 veículos blindados para a força interna de segurança SAVAK — que os britânicos ajudaram a treinar — para brutalmente reprimir a onda inicial de protestas que levaria ao fim do reinado de Pahlavi.
Só porque você é paranoico
Apesar dos esforços práticos e retóricos, as alegações do xá sobre o apoio britânico a Ruhollah Khomeini estavam longe das paranoicas teorias de conspiração.
Afinal de contas, Londres tinha uma longa história de apoiar as facções islâmicas mais extremistas no Oriente Médio para combater as ameaças a seus interesses regionais, por exemplo, financiou secretamente e dirigiu as atividades do grupo Irmandade Muçulmana do Egito em sua tentativa fracassada de derrubar o líder Gamal Abdel Nasser na década de 1950.
Na verdade, outro aiatolá iraniano, Abol-Ghasem Kashani, desempenhou um papel crucial na Operação Ajax, o golpe de Estado que levou ao trono Pahlavi. Kashani financiou e organizou protestos em larga escala que garantiram ao Exército iraniano, apoiado pelos serviços secretos britânicos MI6, um pretexto para derrubar o líder Mohammed Mossadegh.
Além disso, apesar do apoio prático e retórico de Londres ao xá ao público, nos bastidores Whitehall estava perfeitamente consciente do fim inevitável do governo do estão líder iraniano.
Embora fosse evidente que a remoção do xá teria "as mais graves consequências políticas, estratégicas e econômicas para o Ocidente", acreditava-se que "o surgimento de um governo radical dominado pela direita religiosa poderia criar quase tantos problemas para a União Soviética”, sendo visto como um “consolo”.
Além de limitar os danos aos interesses da Grã-Bretanha no país, os planejadores da chancelaria britânica estavam olhando para o futuro — para um tempo em que eles poderiam mais uma vez instalar um líder mais a seu gosto. Em dezembro de 1978, eles estavam argumentando que os ministros deveriam pôr fim a todo o apoio ao xá — tanto público quanto privado – e apoiar a oposição.
"Precisávamos de alguém com carisma para ficar no cargo por alguns anos, corajoso o suficiente para obter inimigos, que esteja pronto a se afastar e dar lugar ao filho do xá como monarca constitucional", escreveu o chanceler britânico em suas memórias.
Embora não haja documentação que indique diretamente que os britânicos decidiram apoiar Khomeini como líder iraniano – apesar dessa possibilidade ter sido considerada – o Serviço Persa da emissora britânica BBC naquela época já apoiava o aiatolá ainda exilado.
Esse apoio era certamente crucial, porque era quase a única estação de rádio a cobrir os eventos iranianos na língua persa, enquanto as próprias redes de rádio e TV do Irã haviam sido fechadas logo após o início dos protestos contra o xá.
No livro "Serviço Persa: a BCC e os Interesses Britânicos no Irã", Annabelle Sreberny e Massoumeh Torfeh notam que o serviço "nunca foi considerado tão pouco isento em suas reportagens como naquela época".
Os autores deixam claro que se tratou de uma política deliberada, defendida pelo diplomata Nicholas Barrington, que estava encarregado de supervisionar os serviços estrangeiros da BBC naquela época.
O rei morreu
O xá abandonou o país em 16 de janeiro de 1979, com o pretexto de férias. Quando ele pediu asilo na Grã-Bretanha, as autoridades recusaram deixá-lo estabelecer-se lá mesmo temporariamente, no âmbito de uma nova política de afastamento máximo do “antigo regime”. No âmbito dessa política, os funcionários britânicos que viajavam para encontrar-se com Pahlavi e seus representantes em sua residência temporária nas Bahamas usariam nomes falsos, enquanto os membros da família do líder deposto foram proibidos de viajar à Grã-Bretanha. Quando o xá morreu em julho de 1980, a Grã-Bretanha enviou apenas seu vice-embaixador ao funeral.
Khomeini retornaria ao Irã do exílio em 1 de fevereiro daquele ano, e logo nomeou Mehdi Bazargan como primeiro-ministro. 11 dias depois, em um discurso na Câmara dos Comuns do Reino Unido, o então primeiro-ministro James Callaghan disse que seu governo "[desejava] estabelecer boas relações" com a administração de Bazargan. Apesar de Bazargan ter cancelado algumas encomendas de armamento com a Grã-Bretanha no mesmo mês, Londres não se desnorteou.
"Rompendo os contratos, não devemos dar a impressão que voltamos as costas ao Irã […] Devemos deixar os iranianos entender que estamos prontos, se quiserem, a retomar o fornecimento de munições e peças de reposição que são essenciais para o funcionamento das suas forças armadas […] Devemos também continuar a incentivá-los a assinar quaisquer contratos que ainda não foram cancelados", escreveu o secretário de gabinete de ministros, John Hunt, em 20 de março de 1979.
As tentativas do Reino Unido de ganhar os favores da recém-formada República Islâmica continuaram mesmo depois do início do cerco à embaixada dos EUA em Teerã, em novembro de 1979, quando 52 diplomatas americanos foram mantidos como reféns por 444 dias.
Depois que Thatcher assumiu o cargo de primeira-ministra em maio daquele ano, ela optou por continuar a política do governo anterior e, além disso, via o Irã como um potencial esteio importante contra o poder soviético no Oriente Médio.
Em um discurso no Parlamento sobre as relações entre Leste e o Ocidente, em 28 de janeiro de 1980, um mês depois da invasão do Exército Vermelho do Afeganistão, a nova primeira-ministra advertiu que Moscou poderia aproveitar o fervor insurrecional na região.
Além disso, Londres ajudou as autoridades iranianas a destruir o partido Tudeh, o maior e o mais poderoso partido político de esquerda do país. Em 1982, o major da KGB Vladimir Kuzichkin desertou para o Reino Unido e forneceu informações valiosas – incluindo uma lista de agentes soviéticos no Irã. Isso foi transmitido pelos MI6 às autoridades iranianas, que executaram dezenas de pessoas indicadas na lista, prenderam mais de 1.000 membros do Tudeh e proibiram o partido.
O empate
A violência desencadeada por essa revelação não pode ser comparada com o derramamento de sangue desencadeado pela contribuição britânica para a guerra entre o Irã e o Iraque.
Dois anos antes, Washington, profundamente descontente com a chegada de Ruhollah Khomeini ao poder, entrou em contato com o então governante do Iraque, um aliado próximo dos EUA, e forneceu armas e apoio financeiro para este invadir o território do Irã. Hussein, que considerava o fundamentalismo xiita como uma ameaça ao seu poder, aceitou essa proposta e invadiu o Irã em 22 de setembro de 1980. Tanto Saddam Hussein como o então presidente dos EUA Jimmy Carter apostaram no rápido colapso do recém-criado regime dos aiatolás. Entretanto, o conflito se transformou na guerra mais longa do século XX.
Violando o embargo da ONU ao fornecimento de armas a qualquer país, tanto os EUA como o Reino Unido continuariam a fornecer armas às duas partes do conflito. Nenhum funcionário foi processado ou penalizado por seu papel na complexa conspiração.
A posição extremamente agressiva de Londres em relação a Teerã hoje em dia é ainda mais perversa, levando em conta que Londres desempenhou um papel tão crucial na promoção e apoio de Ruhollah Khomeini, durante e depois da Revolução Islâmica, fez vista grossa às ações de seu governo e não poupou esforços para treinar e equipar as forças iranianas.
Só nos resta adivinhar quantas armas britânicas ainda circulam entre os militares do país e se a história do Irã teria seguido o mesmo caminho sem o apoio de Londres ao aiatolá.