Nesta quinta-feira (20) o presidente da Rússia, Vladimir Putin, concedeu sua já tradicional entrevista coletiva para os jornalistas internacionais. Para comentar os principais pontos da entrevista, a Sputnik Brasil ouviu Paulo Wrobel, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
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O pesquisador analisou os temas mais comentados da extensa coletiva anual de Putin, que costuma durar algumas horas. A deste ano passou das 3 horas de duração e chamou a atenção de jornalistas e cidadãos espalhados pelo mundo.
Coletiva de imprensa com Vladimir Putin © Sputnik / Aleksei Kudenko |
Putin falou sobre os mais relevantes temas levantados pela imprensa mundial. Entre estes temas tratados estavam as armas nucleares, a saída dos Estados Unidos da Síria e os gastos militares.
Paulo Wrobel, especialista em relações internacionais, analisou, em entrevista à Sputnik Brasil, os detalhes que a coletiva do líder russo revelou. Wrobel alerta para os sinais de que a diplomacia internacional entrou em uma 'espiral' conflituosa, adotando uma retórica diferente da primeira década após a Guerra Fria. Para ele, Rússia, China e Estados Unidos estão no centro dessa mudança que carrega consigo o risco de um conflito nuclear.
Tensão internacional e ameaça nuclear
Um jornalista do Canal Pervy interpelou o presidente russo falando sobre a banalização do tema da guerra nuclear pela mídia, lembrando-se que durante a Guerra Fria o tema gerava temor entre os cidadãos do mundo. O presidente russo afirmou que cresce no mundo uma tendência de subestimar a ameaça de uma guerra nuclear. Ele afirmou que a Rússia sabe como manter a própria segurança e que tem trabalhado para manter essa condição diante das ações dos Estados Unidos, como a saída de tratados sobre armas nucleares.
Vladimir Putin afirmou que a Rússia teve que reagir com a criação de novas armas e conseguiu vantagem, uma garantia de paridade. No entanto, alertou que a diminuição do controle sobre esse tipo de armas pode resultar em uma catástrofe nuclear.
Para Paulo Wrobel, professor de Relações Internacionais da PUC-RJ, tanto a abordagem da pergunta quanto a postura de Defesa assumida pela Rússia diante dos EUA são prova de uma "deterioração geral" das relações entre os países e também do resto do mundo.
"Eu acredito que isso reflete […] uma deterioração das relações bilaterais entre Estados Unidos e Rússia. E uma deterioração em geral, talvez acentuada no último ano, mas que já vem acontecendo nos últimos dois ou três anos. Uma deterioração do quadro das relações internacionais em geral."
Wrobel acredita que o período que se desenha para a terceira década do século XXI é de um "conflito mais agudo no âmbito internacional". Ele lembra que o risco de uso de armas nucleares existe desde a Guerra Fria, "um risco permanente".
Após a Guerra Fria, acredita o professor, "o mundo parecia caminhar para um período mais cooperativo". Ele, porém, elenca alguns fatores que explicam por que essa tendência mudou.
"Eu acredito por várias razões, até mesmo sistêmicas, de conflitos de interesse internacional, recuperação econômica e militar da Rússia, ascensão econômica e militar da China, uma certa independência maior da Europa, uma certa independência maior de outros atores internacionais. Eu acredito que nós talvez estejamos já entrando em um período mais conflituoso das relações internacionais", sentencia Wrobel.
Esse endereço não fica em Moscou
Uma jornalista do The Wall Street Journal disse ao presidente russo durante a coletiva que há pessoas no Ocidente que se sentem ameaçadas pela Rússia e que Putin estaria tentando governar o mundo.
Em referência clara a Washington, Putin comentou que todos sabem onde fica a sede de quem tenta governar o mundo e que ela não é Moscou. O presidente russo citou os US$ 700 bilhões gastos pelos EUA em seu orçamento militar, comparando-os com os US$ 46 bilhões investidos pela Rússia. Putin apontou que a OTAN precisa de um inimigo externo para continuar existindo e que o governo russo tem como objetivo na política exterior apenas a prosperidade e o desenvolvimento de seu país.
Paulo Wrobel acredita que tanto a pergunta quanto a resposta são reflexo do contexto de deterioração das relações internacionais no mundo. Para ele, em certa medida, o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, e também o atual, Donald Trump, no início de seu mandato, tentaram suavizar a relação com a Rússia, no entanto, acabaram modificando suas posturas com o passar do tempo.
"Houve uma tentativa de melhorar um pouquinho e estabelecer relações menos conflituosas entre Estados Unidos e Rússia. Isso, de uma certa maneira, acredito que foi abandonado de ambos os lados. E agora nós estamos em um período de, eu não diria de conflito absolutamente aberto, mas nós estamos em um período mais conflituoso, do qual a entrevista hoje do presidente Putin, a fala especificamente mandando esse recado para Washington, é um nítido retrato desse processo que eu vinha apontando", analisa Wrobel.
"No caso do gasto militar realmente é verdade. O gasto militar dos Estados Unidos ainda é disparado o maior do mundo, o segundo gasto militar do mundo é da China na ordem que não chega a US$ 200 bilhões, quer dizer, os Estados Unidos ainda têm um gasto militar muito superior do que o resto do mundo", continua o pesquisador.
Wrobel lembra que mesmo que a diferença esteja diminuindo os EUA continuam tendo um orçamento militar que reflete seu poderio.
"Essa diferença vem diminuindo, particularmente, pelo aumento do gasto militar chinês. Os Estados Unidos já teve mais gasto militar que o resto do mundo somado durante o período imediatamente depois do fim da Guerra Fria. Não é mais o caso, mas a superioridade militar, com gasto militar, é um reflexo da superioridade militar americana. Então nesse sentido o presidente Putin tem razão de que a grande potência militar do mundo ainda é disparado os Estados Unidos", explica.
Escalada retórica pode levar a conflito
O pesquisador também cita que há na teoria das Relações Internacionais conceitos capazes de explicar a situação atual, em que países como a Rússia são obrigados a investir na Defesa para criar garantias diante do investimento militar de outros países.
"No fundo, no fundo, essa troca de acusações reflete um velho conceito das relações internacionais que é uma ideia de quem arma e quem se defende. É uma ideia do chamado dilema da segurança", explica, apontando que, de acordo com o conceito, um país se arma em função do outro e essa reação segue adiante.
O professor também faz um alerta em sua análise, apontando que vivemos uma "espiral" na qual está contida o risco de uma guerra nuclear.
"Infelizmente me parece que nós estamos entrando de novo em uma certa espiral da qual o risco de uma guerra nuclear faz parte. Nós estamos entrando novamente em uma espiral de acusações mútuas e de dispêndio em armamentos mútuos", adverte.
Ele explica que, com exceção da 2ª Guerra Mundial, um conflito intencional, as grandes guerras, em princípio, não são desejadas. Contudo, com a escalada das ações e suas consequentes reações um conflito real pode surgir, e daí em diante perde-se o controle.
"O caso de uma guerra nuclear, obviamente qualquer líder racional nunca vai procurar empregar armas de destruição maciça que podem conduzir inclusive ao fim do planeta Terra. Conscientemente, racionalmente, ninguém quer isso. Mas a deterioração das relações, infelizmente, pode levar até esse tipo de conflito", lamenta.
Estados Unidos fora da Síria?
A coletiva com o presidente russo também abordou o anúncio feito na quarta-feira (19) por Donald Trump sobre a saída das tropas dos EUA que estão na Síria, em face da derrocada do Daesh. O tema foi trazido por um representante do Chicago Tribune, ao que Putin comentou concordando com a derrota do Daesh. No entanto, o presidente da Rússia ressaltou que os grupos terroristas podem ainda penetrar em países vizinhos e que o território russo faz parte desse espectro.
Já sobre a retirada das tropas norte-americanas, o presidente russo disse que não entende o que significa o anúncio de Trump, uma vez que os EUA dizem o mesmo sobre sair do Afeganistão anualmente e lá estão há 17 anos. Putin também afirmou que o governo russo não vê indícios da retirada das tropas dos EUA, ressaltando que a presença delas é ilegal e desnecessária e que por isso mesmo a saída delas é uma decisão correta.
O professor Paulo Wrobel, da PUC-RJ, acredita que o anúncio da saída das tropas foi inesperado e que há uma oposição à medida por parte das Forças Armadas dos EUA.
"A presença militar americana na Síria hoje é bastante reduzida. Ela se concentra em uma área da Síria onde há uma população de maioria curda, ajudando, de uma certa maneira, a defesa dessa minoria curda, uma minoria que é espalhada pelo Irã, pelo Iraque, pela Síria e pela Turquia e que tem grandes dificuldades de relacionamento com esses quatro países", explica.
Wrobel também acredita que na derrota do Daesh, porém, lembra que há indícios de que seus membros possam estar se espalhando pelos países vizinhos.
"Aparentemente o Estado Islâmico certamente foi derrotado no sentido de que teria perdido em torno de 90% do território que ele controlava. O Estado Islâmico chegou a controlar um território de quase seis ou sete milhões de habitantes. Inclusive tomou posse de poços de petróleo", lembra o pesquisador.
O professor da PUC-RJ aponta ainda que a derrota do Daesh é fruto do trabalho de muitos países, porém que o perigo ainda existe.
"Isso realmente, essa derrota militar do Estado Islâmico, foi devido a uma coalizão, uma enorme coalizão de países, que lutaram todos pela derrota militar dessa verdadeira excrescência internacional que foi o Estado Islâmico. Mas aparentemente o Estado Islâmico ainda teria espalhado, principalmente na Síria, mas também no Iraque, em torno de 30 mil militantes espalhados. Então uma derrota militar total do Estado Islâmico não parece que seja o caso", ressalta.
O anúncio inesperado, segundo Wrobel, pode ser uma estratégia política de Trump para retirar as tropas dos EUA da Síria mais rápido.
"Deve estar sendo utilizado pelo presidente como uma justificativa para apressar a retirada dessas últimas tropas americanas. Na verdade, desde que o presidente Trump assumiu, que ele assumiu com essa bandeira de retirar as tropas americanas tanto do Afeganistão quanto da Síria, e eventualmente do Iraque também, com o objetivo de uma certa retração da presença militar americana no mundo e, particularmente, no contexto do Oriente Médio", explica Wrobel, que salienta que mesmo com a oposição militar a retirada deve acontecer.
O pesquisador lembra que a retirada ainda não teve início, mas que sua consequência ainda é uma interrogação, assim como não se sabe quais serão os reflexos de novas ações da Turquia na região.
"Isso é um grande ponto de interrogação. Por isso que houve, me parece, tanto dos Estados Unidos essa reação do meio militar americano. Vamos aguardar para ver nos próximos dias se isso vai realmente ser levado à frente. Às vezes o presidente Trump anuncia umas coisas meio de supetão, pega todo mundo de surpresa. E já aconteceu outras vezes que ele aos poucos voltou atrás. Então a gente tem que aguardar mais um dia ou alguns dias para ver se essa decisão vai ser levada à frente mesmo", conclui.